segunda-feira, 24 de novembro de 2014

40% das mortes de Curitiba estão na mira de funerárias fantasmas

40% das mortes de Curitiba estão na mira de funerárias fantasmas.


Uma brecha na lei municipal do setor permite que consumidores sejam abordados por empresas de outras cidades, mas muitas delas só existem no papel
Publicado em 24/11/2014 | 


Cerca de 40% das mortes ocorridas em Curitiba estão sujeitas a agenciamento e a serviços intermediados por funerárias de fachada instaladas na região metropolitana. Uma brecha na legislação municipal que regulamenta os serviços funerários permite que os consumidores sejam abordados por representantes de funerárias de outras cidades em hospitais, locais de acidente ou no Instituto Médico Legal (IML). Muitos desses estabelecimentos só existem no papel: são “funerárias fantasmas”, sem sede, funcionários ou equipamentos.
Curitiba tem 26 funerárias escolhidas por meio de uma licitação concluída em 2012. As empresas não podem disputar serviços, que são definidos pelo Serviço Funerário Municipal, órgão ligado à Secretaria Municipal do Meio Ambiente, por um sistema de rodízio. O objetivo é evitar o agenciamento de serviços e garantir uma equanimidade entre as empresas. A regra só vale para moradores de Curitiba. Moradores de outras cidades não são abrangidos pela legislação — o que facilita a atuação das fantasmas. A reportagem monitorou por seis meses dez funerárias da Região Metropolitana de Curitiba (RMC), que prestam serviços na capital, mas que mantêm as portas fechadas. Todas têm autorização da prefeitura de Curitiba para atuar na cidade.
A brecha é dada pelo artigo 3.º do decreto 699, de maio de 2009, que alterou o regulamento do Serviço Funerário na cidade. O artigo estabelece que o usuário pode optar pela funerária de sua preferência quando o morto é um morador de outra cidade que morre em Curitiba.
Esses serviços são feitos à parte do rodízio, em uma modalidade conhecida como “controle”. De janeiro a outubro deste ano, segundo relatórios do Serviço Funerário entregues às concessionárias, 8.893 corpos foram liberados na cidade. Destes, 3.946, ou 44,3% do total, eram de moradores de outros municípios e os serviços foram liberados por meio do “controle”.
Mesmo grupo
Uma das funerárias da RMC que mais trabalha em Curitiba é a Ômega, de Araucária. Um levantamento feito entre agosto de 2012 e janeiro de 2013 (pouco antes de o Sistema Funerário alterar a forma de divulgação dos serviços, que passaram a ficar somente 48 horas no site da prefeitura) mostra que, em seis meses, a Ômega retirou 68 corpos da cidade. A empresa enterrou moradores de cidades como Umuarama, Maringá e Telêmaco Borba.
Na semana passada, a reportagem da Gazeta do Povo esteve pela terceira vez neste ano na sede da Ômega, na Rua da Siriema, 1.365, em Araucária. Nas três vezes, não havia ninguém no local e o telefone celular informado na placa estava desligado. Por telefone, a reportagem falou com um funcionário da Ômega de Curitiba, que informou que as duas empresas são do mesmo grupo da Funerária e Crematório Vaticano.
“Nós mesmos, com a Ômega de Araucária, liberamos o corpo, levamos o corpo para velar e depois trazemos para cremar”, disse o funcionário. Ele informou que o endereço que devia ser procurado é o da Vaticano. “Você conhece o Cemitério Municipal? A Funerária Vaticano fica bem em frente ao Cemitério Municipal. É a mesma da Ômega.”
A diretora da Funerária Vaticano, Milena Cooper, nega que a Ômega tenha qualquer ligação com o grupo. “Não tem nenhuma ligação. Às vezes, é algum ex-funcionário [que dá a informação]. São duas empresas distintas.”
Além da Ômega de Araucária, a reportagem da Gazeta do Povo esteve três vezes neste ano em outras nove funerárias da região metropolitana que fazem serviços em Curitiba. Todas estavam fechadas: Santa Mônica e Santa Sara, em Quatro Barras; Renascer, Máximo e Nossa Senhora Aparecida, em Piraquara; Vida Graciosa, em Araucária; e Bom Jesus Jr., Luz Divina e Cristo Rei, em Tijucas do Sul.
Na funerária Renascer, na Rua Arthur Martins, em Piraquara, funciona uma estofaria. No endereço da Luz Divina, em Tijucas do Sul, há uma loja de produtos eletrônicos. As demais estão em imóveis fechados ou abandonados. Os vizinhos da Santa Mônica dizem que o local é utilizado como depósito de outra funerária. Não havia telefone de contato nesses locais.
No telefone informado na Santa Sara, um funcionário informou que o serviço poderia ser tratado na Rua Barão de Antonina, 37, em Curitiba. A reportagem se passou por cliente e esteve no local, nas imediações do Cemitério Municipal, e constatou que se trata da Funerária Santa Felicidade, uma das 26 concessionárias de Curitiba.
A reportagem não conseguiu contato com o responsável pela Santa Felicidade.



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Prefeitura diz desconhecer empresas de fachada
A diretora do Departamento de Serviços Especiais da prefeitura, Patrícia Rocha Carneiro, disse desconhecer que “funerárias fantasma” da região metropolitana retirem corpos da capital. A lei permite que empresas de fora retirem de Curitiba corpos de moradores de outros municípios. À prefeitura cabe registrar as empresas, mediante a apresentação de alvará. O Departamento é responsável pelo Serviço Funerário da capital.
Para Patrícia, aparentemente as empresas da região metropolitana que retiram corpos em Curitiba estão em situação regular, mas ela não descarta que alguma funerária de Curitiba tenha se associado a alguma funerária de fora. “A gente não tem esse conhecimento. O decreto [que regulamenta o serviço] fala que [as funerárias de Curitiba] não podem nem destinar veículo para filiais”, afirma ela.
Ela isenta de culpa as concessionárias da capital. “O que acontece em Curitiba não é culpa das concessionárias. A lei estabelece uma condição de excepcionalidade para a contratação de empresa não sediada em Curitiba. Se alguma delas, para tentar sobreviver, aderiu à concorrência lá fora, são outros quinhentos. Até porque é concorrência de óbito que ocorreu fora de Curitiba e não está na nossa jurisdição”.
De acordo com a diretora, é possível ainda que uma empresa concessionária de Curitiba tenha uma filial em outra cidade e indique a funerária de fora se o morto for morador de outro município. “Eles vão dizer que a filial pode. Não há ilegalidade.”
Patrícia diz, no entanto, que a funerária Ômega não pode usar a estrutura da funerária Vaticano. Segundo ela, é contra a lei o que a reportagem flagrou. De acordo com a diretoria, a Ômega teve uma permissão excepcional para atender na funerária Vaticano, que já expirou.
Dados
Desde o início de 2013, a prefeitura não publica o balanço mensal de serviços em seu site. Na página do Serviço Funerário entram apenas os óbitos do dia, que ficam somente 48 horas no ar. A reportagem utilizou dados de 2012 e os deste ano foram repassados por funerárias de Curitiba, que recebem um balanço mensal. Na semana passada, a reportagem solicitou ao Serviço Funerário o número de pessoas de fora que morreram na cidade neste ano, mês a mês, e o número de serviços feito por cada funerária da região metropolitana, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria.
Reação
Pinhais não concede mais alvará para o setor
O presidente da Associação dos Municípios da Região Metropolitana de Curitiba (Assomec) e prefeito de Pinhais, Luiz Goulart Alves, diz que suspendeu a concessão de alvarás para funerárias no município. Segundo ele, havia uma disputa entre empresas que já estavam instaladas regularmente e outras tentaram se instalar na cidade.
“Existe um sistema de burla. Tanto das da região metropolitana para atuar em Curitiba, quanto das funerárias de Curitiba para fazer funerais de pessoas da região metropolitana que morreram em Curitiba”, afirmou o prefeito. “Já faz algum tempo que em Pinhais não temos mais liberado alvarás para funcionamento de funerárias.”
Ele ressaltou que várias funerárias tentam conseguir alvará para vender acessórios, mas acabam também driblando o sistema para vender enterros.

Projeto de concorrência livre é suspeito de fraude


Projeto de concorrência livre é suspeito de fraude

Publicado em 24/11/2014 | 

Um projeto de lei que tramita na Câmara Municipal de Curitiba libera as funerárias para fazer serviços fora do rodízio promovido pela prefeitura. Apresentado pela Federação Comunitária das Associações de Moradores de Curitiba e Região (Femoclan), o projeto de iniciativa popular deve ser analisado amanhã pela Comissão de Legislação e Justiça da Câmara. Na sessão da última quarta-feira, o vereador Cristiano Santos (PSC) pediu vistas do projeto.

Objetivo
Brecha permite disputa por corpos e lucro maior
A brecha na legislação municipal permite que funerárias de outras cidades disputem corpos em Curitiba e repassem os serviços para outras empresas. Isso abre a possibilidade para que funerárias que atuam na capital enterrem moradores de outras cidades por preços acima da tabela da prefeitura e paguem menos impostos — o que é proibido por lei.
As 26 concessionárias de Curitiba foram selecionadas com base nos porcentuais repassados à prefeitura, que vão de 7,23% a 21,30% de cada serviço. Os valores são destinados ao Fundo Municipal do Meio Ambiente. As empresas também pagam o Imposto Sobre Serviços (ISS), que é de 4,23% sobre o valor da nota. Ao liberar serviços pelas funerárias da região metropolitana, a empresa de Curitiba paga menos impostos. Além disso, driblam o tabelamento de preços da prefeitura.
“É uma tentativa de burlar o sistema. Estamos tentando coibir com uma alteração na lei. Só assim vamos conseguir eliminar esses piratas”, diz o vice-presidente do Sindicato dos Estabelecimentos de Serviços Funerários de Curitiba, Nilson Zancan.
A diretora do Departamento de Serviços Especiais, ao qual está vinculado o Serviço Funerário de Curitiba, Patrícia Rocha Carneiro, confirmou que a prefeitura está estudando uma alteração na lei, para impedir a disputa por serviços. A ideia é que apenas funerárias da cidade de origem do morto possam fazer o serviço.
Gazeta do Povo apurou que o projeto que libera as empresas do rodízio tem apoio da Funerária e Crematório Vaticano, uma das maiores da cidade. No ano passado, o Serviço Funerário de Curitiba recebeu uma gravação em que uma pessoa admite ter sido contratada pela Vaticano para coletar assinaturas de apoio ao projeto, uma forma de influenciar no voto dos vereadores. “O Crematório Vaticano contratou para colher assinaturas”, diz ela.
Milena Cooper, diretora da Vaticano, disse que a empresa apoia o projeto, mas negou qualquer ligação com a coleta de assinaturas. “Eu soube da gravação, a moça está como consumidora. A maioria dos funcionários [da Vaticano] é a favor da livre escolha”, afirma. “Nós consideramos o projeto positivo, é a favor do consumidor.”
O presidente da Femoclan, Nilson Pereira, diz que foram coletadas 70 mil assinaturas e nega qualquer relação com a Vaticano. “[O rodízio] fere o Código de Defesa do Consumidor. [Sem o rodízio] teria uma disputa de valores entre as funerárias”, afirma.
A advogada do Sindicato dos Estabelecimentos de Serviços Funerários do Paraná, Fernanda Capriotti, diz que a entidade pretende recorrer ao Tribunal Regional Eleitoral para atestar se as 70 mil assinaturas são de pessoas com domicílio eleitoral em Curitiba. “Não existem questionamentos em relação ao sistema de rodízio, de onde apareceram essas 70 mil assinaturas?”,questiona.
“Imaginamos que essas assinaturas podem ser de pessoas da região metropolitana ou de pessoas induzidas a assinar.”
Para Fernanda, o serviço funerário não pode ficar sujeito à livre escolha. “O sistema de rodízio já foi questionado e a Justiça decidiu que o serviço funerário se submete a um regime diferenciado, de supremacia do interesse público sobre o privado”, comenta. “Não há como falar em livre escolha e flexibilização. O município organizou o sistema com a lei 10.595 e fez uma licitação, há contratos em vigência”. Para o sindicato, a flexibilização inviabilizaria o retorno do investimento feito pelas concessionárias.
Presidente da Comissão de Legislação da Câmara, o vereador Pier Petruziello (PTB) diz que os vereadores analisarão com calma o projeto da Femoclan. “Pelo que estamos sentindo, os vereadores darão uma olhada com calma nesse assunto. Tem muito interesse envolvido.”