O ponto de encontro das crianças é o túmulo de uma certa Bibi Jawaher.
Ela morreu há 27 anos, a inscrição em sua lápide está tão desbotada que
você tem que passar os dedos sobre ela para entender totalmente o seu
nome e o ano da sua morte.
Mas a boa localização do seu lugar de descanso, em uma pequena colina no
meio do vasto cemitério Kart-e-Sakhi em Cabul ocidental, dá a um grupo
de jovens trabalhadores uma vista deslumbrante para potenciais clientes
que visitam as milhares de sepulturas que pontilham a montanha.
Aqui está um joalheiro de meia-idade fazendo sua peregrinação semanal à
mãe, que morreu de câncer; ele paga um dinheiro extra para que o túmulo
dela seja lavado com a precisão de um banho de esponja. Aqui está a mãe
angustiada por pesadelos de que o túmulo do seu filho de 15 anos, que
cometeu suicídio depois de um fracasso amoroso, seja engolido por
chamas. Ela visita o cemitério regularmente para verificar a lápide, que
mostra um retrato do seu filho vestindo jaqueta e gravata, e oferece às
crianças um pouco de água para ser borrifada, ritualmente, sobre o
túmulo.
O ato de jogar água em sepulturas é uma tradição antiga no Afeganistão.
Acredita-se que isso mantém a memória do falecido fresca e os ajuda a
serem absolvidos dos pecados que cometeram em vida.
Bem sobre o corpo de Jawaher, as crianças esperam com seus baldes
grandes, carregados em um poço de um santuário das redondezas e
transportados em suas costas. Quando elas encontram um cliente, correm
com baldes menores, muitas vezes brigando entre si pelo caminho. Mas no
final elas sempre mantêm um código tácito: quando uma delas consegue um
cliente, o resto se retira e imediatamente recomeça a vasculhar o lugar
em busca da próxima oportunidade.
As crianças buscam diversão onde podem, mas o negócio delas é sério.
Põem comida na mesa das suas famílias. Elas fazem cerca de 10 afegãos
por cada pequeno balde que borrifam —o preço de um pedaço de pão, cerca
de 15 centavos (aproximadamente R$ 0,50). Em dias de sorte, conseguem
muito mais graças às gorjetas, algumas tão generosas como US$ 10 (R$ 35)
ou até US$ 20 (R$ 70), o que marca a sepultura em questão como um lugar
de sorte, diferente em suas memórias.
Elas acabaram tendo de contar com a dura realidade da vida no
Afeganistão: depois de décadas de guerra e tragédias incrivelmente
frequentes, cada vez mais famílias afegãs têm algum tipo de negócio em
cemitérios de Cabul, onde se concentra uma parte cada vez maior do
cotidiano.
"Ajmal normalmente joga a água sem pedir permissão", disse Jamshid, 10,
que se une a ele em dias de muito trabalho. É uma tática eficaz: uma vez
que a água é borrifada, o visitante do falecido tem de pagar.
"Quem está dizendo que eu faço isso?", queixou-se Ajmal, também de dez
anos. "Está bem. Talvez eu tenha feito isso uma vez. Ou duas."
Atrás deles, outro menino estava montado na lápide de Jawaher como se estivesse em um cavalo de brinquedo.
"Nós não a deixamos suja assim", disse Jamshid, sobre sua base ao lado
da sepultura. "Nós lavamos o túmulo com a água que nos sobra antes de
irmos para casa."
RINHAS E ALGODÃO-DOCE
O cemitério de Kart-e-Sakhi ganha vida às quintas e sextas-feiras, o fim
de semana afegão. Lápides específicas se tornaram pontos de referência
para novas comunidades, algumas transitórias, outras mais permanentes.
Crianças com mãos rachadas brincam com bolinhas de gude na sepultura de
Zaher Turkman. Dois homens fumam maconha perto do túmulo de Sayed
Rohullah Sadat. (No final, eles eram policiais.) Um estudante
universitário, usando uma jaqueta azul e segurando suas anotações de
classe, caminha entre as sepulturas, tentando memorizá-las antes de um
exame.
O cemitério é uma dádiva de Deus para os jovens amantes, um lugar de
privacidade, onde, com um manto de luto estabelecido ao seu redor, podem
falar por telefone sem as interrupções ocasionadas pela barulheira que
em outros lugares é muito normal aqui. Em um canto distante, escondido,
duas adolescentes se sentam na beira de uma sepultura, uma delas fala ao
telefone, sorrindo e ficando ruborizada. Um vendedor de algodão-doce
circula em uma bicicleta.
Todo fim de semana, há rinhas no túmulo de Sayed Faqir Hussain. Os
homens sentam-se em círculo, e as aves treinadas são trazidas debaixo
dos braços dos seus proprietários. O mestre-de-cerimônia do jogo, seu
padrinho e árbitro, é Said Gul Agha, que atende pelo apelido de "O
Mecânico", sua vocação nos dias úteis.
As sepulturas em Kart-e-Sakhi se tornaram chamativamente decoradas
recentemente. Sempre houve padrões florais e poéticos, mas agora há
várias lápides com retratos gravados e até cartazes pendurados nas
grades que cercam as sepulturas.
A nova safra de lápides decoradas é uma amostra, em sua maioria, do
trabalho de um artista, Muhammad Zahir, que deixa seu endereço e número
de telefone na parte inferior de cada obra.
Zahir trabalhou 25 anos como operário no Irã, onde aprendeu a fazer
esculturas, lareiras e fontes de pedra. Fazer retratos em lápides era
uma pequena parte do seu negócio.
Quando voltou ao Afeganistão, há mais de uma década, primeiro tentou
trabalhar com esculturas, lareiras e fontes. Elas tiveram uma boa venda
durante a enxurrada de dinheiro ocasionada pela massiva presença militar
internacional, mas as vendas caíram e depois pararam.
"Só nos restou fazer essas lápides", disse ele, "porque morrer é fácil aqui".
SEM ESPAÇO
Em Cabul, uma cidade pequena, mas superpovoada e não planejada, a
logística de lidar com a morte em uma taxa tão rápida ao longo de três
décadas trouxe dilemas.
"Estamos enfrentando uma falta de espaço para cemitérios na cidade",
disse Abdul Rahman Ahmadzai, diretor do departamento do Ministério de
Assuntos Religiosos que supervisiona os cerca de 30 cemitérios de Cabul,
12 deles enormes, como Kart-e-Sakhi.
Desde a guerra civil, que começou na década de 80, cemitérios não
planejados surgiram por toda a cidade. Na década de 90, quando a luta
entre facções se intensificou, as pessoas mal podiam sair por medo dos
rojões, então muitas vezes enterravam seus entes queridos em qualquer
pedaço de terra que encontravam. Agora, cada túmulo representa uma
disputa de terra que deve ser solucionada pelo governo.
"Nossa política é que, qualquer que seja o lugar em que corpos são
enterrados, ele se torna automaticamente propriedade do governo", disse
Ahmadzai. "Se for uma propriedade das pessoas, o governo lhes dá
propriedades em outros lugares."
O departamento de Ahmadzai tem trabalhado na aquisição de terras em
distritos fora dos portões da cidade, para mover os cemitérios para lá. E
ele limitou rigidamente o espaço para sepulturas individuais: 1,5 m por
2,5 m, dimensão que, segundo ele, é requerida de acordo com a sharia
(lei islâmica).
Ahmadzai sabe das atividades das crianças em Kart-e-Sakhi, claro. Isso
acontece em todos os lugares, e há uma tradição reconfortante por trás
disso, disse. "A pulverização de água é boa, porque se os mortos
pecaram, sabemos que mesmo a menor planta louva a Deus, e a água pode
ajudar plantas e ervas daninhas a crescer."
REUNIDOS POR DINHEIRO
Os próprios jovens trabalhadores, que oscilam entre 5 e 13 anos, têm
preocupações mais mundanas em suas mentes, em sua maioria. Eles foram
endurecidos pela concorrência, pelas circunstâncias difíceis e pela
multidão com que se misturam.
Em uma quinta-feira à noite no final do outono, as crianças esperavam
que aparecesse trabalho no túmulo de Jawaher. O cemitério estava
tranquilo. Um menino, Edris, com roupas sujas e o rosto cheio de marcas,
com catarro escorrendo do nariz, montou na lápide da pobre mulher,
balançando-se para a frente e para trás. (Em uma visita feita apenas uma
semana depois, a lápide de Jawaher seria encontrada em pedaços.)
Edris não parecia ter mais do que seis anos, mas foi indagado sobre
quantos anos tinha. Ele contou os dedos e disse: "Vinte e dois". Em que
série está? "Assim", disse ele, mostrando os dedos das duas mãos: "Vinte
e dois".
"Ele fica aqui o dia inteiro, e vai para casa conosco à noite", disse
Ajmal. "Quando sua família muda a roupa dele, ele não gosta. Ele veste a
suja de novo e vem para cá."
Tradução de DENISE MOTA