quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Como funciona a indústria da cremação e por que ela prospera no mundo todo

Como funciona a indústria da cremação e por que ela prospera no mundo todo

No maior crematório do Brasil, o de Vila Alpina, em São Paulo, a média desse tipo de rito funerário dobrou em uma década, chegando a 10 mil por ano.
 
“Favor comparecer à sala de cerimônias.” É assim, por um chamado de um alto-falante, que as crianças até então se divertindo com observar carpas num laguinho e os adultos por perto entram no prédio. Todos se movem em direção a um anfiteatro de cortinas brancas e assentos com almofadas verdes. O centro da sala é conectado por um elevador ao andar de baixo. É por ali que sobe o motivo daquele encontro: um caixão. Passam-se dez minutos de palavras e homenagens ao falecido. É tudo rápido. Em seguida, a urna desce pelo mesmo caminho de onde surgiu, no elevador onde nada mais cabe além dela. Encerrada a cerimônia, a família deixa o anfiteatro. E aí começa a parte que quase ninguém conhece.
Quando o caixão desce, uma campainha toca alguns metros abaixo. Um funcionário do Crematório Municipal Dr. Jayme Augusto Lopes, mais conhecido como Vila Alpina, na Zona Leste de São Paulo, abre a portinhola e recebe a urna. Com a ajuda de um carrinho, a coloca em uma câmara frigorífica. A urna vai esperar ali no mínimo 24 horas, prazo estabelecido por lei — ou 72 horas, ou até dez dias, dependendo da religião ou escolha da família. Passado o tempo determinado, a urna entra numa fila de caixões que serão incinerados.
Faz calor, mas não é o sol. São os quatro fornos a gás de 4 metros de altura. Em 1974, esse foi o primeiro crematório da América Latina. Por muito tempo, foi o único. Hoje, existem mais de 100 só no Brasil. E a demanda é crescente. Um número cada vez maior de pessoas acha que não faz mais sentido ter como única alternativa após a morte ir parar debaixo da terra. A falta de opções parece não combinar com nossa era, marcada pela abundância de escolhas. Num claro sinal de quebra de uma tradição milenar dos cristãos, ser cremado virou, digamos assim, uma nova tendência.
Para otimizar a incineração de corpos no crematório da Vila Alpina, a cada meia hora funcionários remexem as cinzas usando uma espécie de pá gigante Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Para otimizar a incineração de corpos no crematório da Vila Alpina, a cada meia hora funcionários remexem as cinzas usando uma espécie de pá gigante Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Na década passada, a média de corpos cremados por ano no Vila Alpina foi de 4.630. Em 2017, o número passou dos 10 mil. No Primaveras, cemitério e crematório em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, as cremações já representam 30% do total. O Cemitério da Penitência, no Caju, Rio de Janeiro, começou a cremar corpos em março. No primeiro mês, foram oito. Em outubro, foram quase 150. Gisela Adissi, presidente do Sindicato dos Crematórios e Cemitérios Particulares do Brasil, disse que a procura cresce em todas as regiões do Brasil.

O fenômeno está longe de ser tipicamente brasileiro. A própria Igreja Católica, que aboliu a proibição da incineração dos mortos nos anos 60, sentiu-se recentemente obrigada a dar novas instruções sobre o tema por causa do “significante aumento” da prática em vários países. As regras aprovadas pelo papa Francisco dizem que a Igreja prefere que os mortos sejam enterrados, mas continua permitindo a cremação, com uma ressalva importante: as cinzas não devem ser espalhadas.
Depois de retirados dos fornos, os restos queimados são peneirados para que sejam retirados pedaços de madeira do caixão e de flores. Em seguida, os fragmentos de ossos são levados a um triturador Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Depois de retirados dos fornos, os restos queimados são peneirados para que sejam retirados pedaços de madeira do caixão e de flores. Em seguida, os fragmentos de ossos são levados a um triturador Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Nos Estados Unidos, são mais de 2.100 crematórios. Em estados como a Califórnia, entre 60% e 80% dos mortos são queimados. No Canadá, desde o começo da década passada, a maioria dos mortos é cremada. Na Inglaterra, de cada dez mortos, sete são cremados — ashes to ashes, como cantou, citando uma passagem bíblica, David Bowie, que em 2016 deixou tantos de nós de luto. Suas cinzas foram espalhadas na Ilha de Bali, na Indonésia.
No Vila Alpina, cada incineração leva em média duas horas. Corpos mais pesados demoram mais. Caixões de 250 quilos levam o dobro do tempo. A maioria das urnas é de madeira, mas também há de papelão — a família escolhe. Só não pode ser metal. Joias e acessórios derretem no forno. A exceção são os marca-passos, que devem ser previamente retirados, pois explodem no fogo.

A rotina se repete por 24 horas, todos os dias. O funcionário retira as alças e o vidro que cobrem a parte superior do caixão e, com o auxílio do carrinho, acomoda a urna no forno, já aquecido a 800 graus. Quando a urna pega fogo, a temperatura sobe para mais de 1.000 graus. A cada meia hora, o funcionário levanta a porta do forno para espalhar as cinzas e otimizar a incineração. Usando avental e proteção para olhos e ouvidos, ele manuseia uma espécie de pá gigante para remexer o fogo.
Os tempos de atividade em cada forno são controlados com anotações, e as urnas identificadas com números e nomes. Os fornos possuem uma espécie de gaveta na parte dianteira, para onde são dirigidos os restos queimados, puxados de dentro do equipamento. A gaveta sai em brasa, com os fragmentos de ossos. Não, os ossos não queimam totalmente. As gavetas são levadas a uma sala contígua, com suas respectivas identificações, onde resfriam por cerca de 40 minutos. Depois, o “conteúdo” passa por uma grande peneira. “É para separar os restos da madeira e flores que estavam no caixão dos ossos fragmentados”, explicou Filomena Falconi Alcântara, há 31 anos auxiliar técnico-administrativa no Serviço Funerário do Município de São Paulo.

Dali, os fragmentos de ossos são levados a um triturador. Pequenas bolas de ferro, bastante pesadas, também são colocadas no equipamento ligado para ajudar a quebrar os ossos com o movimento. Os pedaços menores lembram uma casca de ovo. As cinzas são, então, colocadas em um saco transparente de tamanho A4, que pode ser entregue assim aos familiares ou transportado a uma urna. Ao final, os cerca de 70 quilos de um corpo humano viram de 2 a 3 quilos de fragmentos de ossos. A funcionária Falconi mostrou os sacos plásticos organizados em uma caixa — são dezenas, todos identificados. Quando foi a vez de seu pai ser cremado ali, Falconi não teve coragem de ficar junto ao forno.

É importante desfazer aqui três mitos sobre o processo de cremação. O primeiro: não há corpos empilhados no mesmo forno. Em cada equipamento cabe apenas uma urna por vez. E tanto fornos quanto gavetas são limpos a cada incineração. O que não evita, claro, que algumas partículas de pó humano se misturem no ar.
Segundo: não se sente um cheiro forte e nauseante durante a queima. Nada do odor de carne assando nas margens do Ganges, em Varanasi, na Índia. Cada forno é projetado com diferentes câmaras com desenho em “U”, que fazem a fumaça circular por filtros de ar. Ela vai se dissipando no caminho e se torna quase imperceptível na chaminé que liga o andar subterrâneo dos fornos à superfície. O terceiro ponto é a composição das cinzas. Como somos feitos de 75% de água, as cinzas se resumem a ossos triturados.

É com objetividade que os funcionários tentam não associar emoção ao trabalho. Salvador Barriero passa pela experiência há pelo menos 11 anos. Começou antes ainda, com limpeza, sepultamento e exumação em um cemitério. “Quando passei no concurso, morria de medo. Tinha pesadelo com defuntos, de como seria”, afirmou. Hoje diz que “é um serviço normal, como outro qualquer”. Em um turno de 12 horas — os funcionários descansam as 24 horas seguintes —, Barriero chega a incinerar cerca de 15 corpos.
A pior parte é quando chega uma criança. Não raro, bichinhos de pelúcia no caixão vão junto para o forno. Há lendas também. Uma vez, um músico foi cremado com o violão e, até hoje, os funcionários brincam dizendo que escutam uma cantoria de vez em quando. O semblante de Barriero só fica sério ao lhe ser perguntado como imagina o próprio fim. “Quero ser enterrado. Não quero ser cremado, não. Vai saber se dói. Nunca morri para saber.” O que sente depois de tantos anos? “Moça, para resumir bem (ele olha para o forno), nós não somos nada. E todo mundo vai acabar do mesmo jeito.”
A imagem das chamas, em suas nuances de vermelho e amarelo, é viva e impactante. Para algumas religiões, o fogo purifica. E, para muitas famílias, a cremação representa menos sofrimento que um sepultamento. Não resta uma lápide permanente a encarar. Não há custos fixos no longo prazo. No Vila Alpina, o preço da cremação vai de R$ 115 a R$ 2.100. O que encarece é o tipo de caixão. E a urna é cobrada à parte. Já o sepultamento parte de R$ 40, mas há taxas de jardinagem e manutenção do túmulo além do serviço funerário. Após três anos, também é preciso fazer a exumação, cujo preço começa em R$ 103. Até aí, a família já gastou pelo menos R$ 2 mil, no formato mais simples. Mas a motivação para cremar nem sempre está ligada ao preço. Dá para fazer a cremação e continuar indo ao crematório.
Sala de velório personalizado no Primaveras, de Guarulhos. Clientes podem escolher iluminação, comida, som e imagens Foto: Francio Holanda / Agência O Globo
Sala de velório personalizado no Primaveras, de Guarulhos. Clientes podem escolher iluminação, comida, som e imagens Foto: Francio Holanda / Agência O Globo

Lápide dos Mamonas Assassinas no cemitério Primaveras, de
Guarulhos. Visitantes podem escanear um QR Code para conhecer a história do grupo. O cemitério oferece o serviço a todos os clientes Foto: Francio Holanda / Agência O Globo
Lápide dos Mamonas Assassinas no cemitério Primaveras, de Guarulhos. Visitantes podem escanear um QR Code para conhecer a história do grupo. O cemitério oferece o serviço a todos os clientes Foto: Francio Holanda / Agência O Globo
A verdade é que passamos por uma ressignificação dos rituais de despedida. A maior procura por cremação aumentou o número de columbários. São salas com espaços para dezenas de urnas com cinzas, que ficam dispostas em vitrines de vidro personalizadas. A do Primaveras, cemitério e crematório em Guarulhos, famoso por abrigar os integrantes do grupo Mamonas Assassinas, fica ao lado das salas de velório, de frente para o jardim de lápides. Cada quadrado é uma dimensão de memória e saudade.
Nicho de cinzas no columbário do Primaveras, de Guarulhos. Parentes costumam deixar objetos de que o morto gostava Foto: Francio Holanda / Agência O Globo
Nicho de cinzas no columbário do Primaveras, de Guarulhos. Parentes costumam deixar objetos de que o morto gostava Foto: Francio Holanda / Agência O Globo
Alguns guardam óculos, camisas de time de futebol, maço de cigarro, imagens de santos, revista de palavras cruzadas, porta-retratos eletrônico, baralho, sapatinhos, dinossauro de brinquedo... O que fica com a luz permanentemente acesa é de uma senhora que tinha medo do escuro. Outro acabou de ganhar uma miniatura de Kombi que pisca — presente da filha, que há pouco mais de um ano cuida da decoração do nicho do pai, arrumado também com boné, vidro de perfume e um relógio (a bateria ainda funciona).
No nicho de Ismael de Almeida, dois vasinhos de flores, óculos e uma camisa azul do time da pelada ficam na frente da urna do major da polícia falecido há quatro anos. O filho Marco reluta em levar também as condecorações, ainda guardadas em casa. “Quando dá saudade, a gente vem”, afirmou. A esposa de Almeida, Elia, elogiou a localização: a vitrine no fundo da sala, no canto inferior direito, fica bem perto de um jardim vertical, atrás de um muro de vidro. “Ele não gostava de ir a velório, nem de visitar cemitério. Mas aqui é calmo, traz paz. Menos impactante do que uma lápide. Já avisei a meus filhos para quando for minha vez me colocarem aqui do lado.”

O uso do columbário do Primaveras é grátis por 30 dias. Depois, as famílias que optam por deixar as cinzas ali pagam R$ 150 mensais pelo espaço. As cremações são feitas em outra sala mais adiante. Ao contrário de outros crematórios no mundo, em que a urna desce por um elevador para ser incinerada, no Primaveras ela sobe, alçada por um elevador — o que, de acordo com o marketing do crematório, seria uma representação simbólica da elevação do espírito.
A lápide dos pais do comerciante Sérgio Fini com QR Code para celular, que leva a um site com fotos e informações sobre eles Foto: Francio Holanda / Agência O Globo
A lápide dos pais do comerciante Sérgio Fini com QR Code para celular, que leva a um site com fotos e informações sobre eles Foto: Francio Holanda / Agência O Globo
O comerciante Sérgio Fini quis um layout novo para decorar a lápide da mãe, Antonieta. Ela faleceu em junho e foi sepultada ao lado do marido, Ernesto, morto há oito anos. “Eles tiveram quatro filhos e criaram uma família com amor. Essa é uma forma de fazer algo para mostrar a eles que valeu a pena”, disse Fini. A lápide dos pais tem até QR Code para celular, que leva a um site com fotos e informações sobre quem foi sepultado ali.
Caixa de memórias, nas quais familiares colocam imagens e objetos de seus entes queridos Foto: Francio Holanda / Agência O Globo
Caixa de memórias, nas quais familiares colocam imagens e objetos de seus entes queridos Foto: Francio Holanda / Agência O Globo
A transformação pela qual passa a indústria da morte no Brasil, um setor que movimenta R$ 7 bilhões por ano, é consequência também de uma nova geração de empreendedores, que muitas vezes herdaram o negócio de cemitérios dos pais e querem inovar. Gisela Adissi, que também é presidente do grupo Primaveras, inventava, quando criança, histórias para os coleguinhas da escola sobre de onde vinha o sustento da família. Já adulta, depois de provar o dia a dia em multinacionais, sentiu que seu propósito estava mesmo no negócio dos pais. “Muitas vezes somos vistos como vilões, como os que ganham dinheiro no pior momento da vida das pessoas. Mas sabemos também que com o cliente existe uma família que adoece e que precisa de acolhimento”, afirmou Adissi.

Ela formou um grupo com outros herdeiros do ramo funerário para trocar ideias com cemitérios pelo mundo. Já foram aos Estados Unidos, Chile, Peru, Colômbia, Japão, China, Espanha, Itália. Há dois meses, estavam na Bolívia. No ano que vem, será a vez da Austrália, e, em 2021, vão carimbar o passaporte para o México. Foi de um rapaz da Malásia e que mora na Austrália, aliás, que veio a ideia da plataforma on-line de homenagens, acessada pelo QR Code nas lápides. Ele havia perdido o pai, estava longe e queria se comunicar com a família, contar as memórias dele. Na plataforma há opção de as pessoas “participarem” ao vivo dos velórios, acenderem vela virtual, avisarem sobre missas, deixarem mensagens na página — as crianças podem mandar desenhos.
O despachante público Luiz Claudio Correia Nunes, de 64 anos, já idealizou o que acontecerá quando chegar sua vez. “Quero bastante alegria, ninguém chorando, aquela lamentação toda. Tenho um lado roqueiro, sou festeiro. Meu sonho é que no meu velório toque Iron Maiden, interpretando ‘Phantom of the opera’. Também quero que os convidados possam beber vinho, cerveja artesanal, prosecco”, contou Nunes, que já pagou por um plano funerário no Cemitério da Penitência, no Rio de Janeiro.
 
 
As ideias atendem ao gosto do freguês. Em Porto Alegre, uma família pediu para servir chope, tequila e uma tábua de frios em um velório. Em outro, o neto dançou valsa em homenagem à avó. Já na cerimônia de despedida de um militar, foi preciso adaptar o espaço para receber uma tropa de cavalaria. Houve ainda um pedido para o velório ser feito dentro de um barco, com a capela ornamentada com tarrafa, vara de pescar e banquinho.
A procura levou o complexo da Penitência, no Rio, a lançar em setembro um menu de serviços especiais para o grand finale. Os velórios podem ter trilha sonora, música ao vivo — há uma playlist das mais tocadas, e “Ave Maria” e “Amigos para sempre” são campeãs de pedidos —, projeção de fotos e vídeo, chuva de pétalas de rosa e transmissão on-line, com senha de acesso para um site, além de QR Code nos jazigos verticais. É possível, também, remontar o quarto ou o escritório de quem partiu no mausoléu do cemitério vertical, ou criar cenários, como uma praia. É a morte espetáculo.
O cemitério Jardim da Ressurreição, de Teresina, já fez muita gente rir. Há dois anos, virou “o cemitério mais famoso da internet” graças a uma campanha peculiar nas redes sociais. Ideia do filho do proprietário, Diego Oliveira. Algumas das postagens mais famosas no Instagram: “Senhoras e senhores, ninguém mais vai morrer. Ass: Dona Morte (É verdade esse ‘bilete’)” — uma referência a um meme famoso de uma criança que inventou um bilhete da professora; “Hoje é dia daquele amigo que sempre desenterra seu passado sujo. 17/08 — Dia do coveiro”; “Hoje eu tô só o pó” (e a foto de uma urna) ou ainda “Que tiro foi esse?” (e uma estátua no chão). A conta repleta de memes tem mais de 16 mil seguidores. “Somos bem leves na página, mas claro que não usamos esses termos com os clientes. Aí a preocupação é com a dor da família”, explicou Maria das Dores, gerente do cemitério.

Frases bem humoradas nas redes sociais, cremação, homenagens com bebidas alcoólicas, decorações temáticas, músicas, alternativas digitais...Todas essas estratégias, bem com a cara do século 21, parecem ser uma tentativa de tirar o peso da finitude. E, de fato, muitas pessoas afirmam que as novidades as ajudam a amenizar o sofrimento. Mas fica uma dúvida: será que o medo de morrer, assim como a dor de quem fica, não é tão inevitável como a morte? 
 
 Revista EPOCA