sexta-feira, 4 de novembro de 2011

O dia de Finados num cemitério. Para bichos


Um cemitério em Campinas se especializou em dar um fim digno aos que acompanham os humanos. Histórias é o que não faltam. Foto: Tory Oliveira
Todo Dia de Finados, a dona de casa Carolina Scuciato sai de sua casa, em Campinas (SP), e vai até o afastado bairro de Jardim Santa Cândida. É lá, no terreno de 5.000 metros quadrados protegido por um muro alto, que está enterrado um de seus entes mais queridos. A mulher corpulenta de 31 anos chega ao seu destino próximo ao meio dia, envergando um vestido vermelho estampado e acompanhada do marido e da filha pequena.
Na próxima meia hora, dedica-se a colocar flores frescas, arrancar ervas daninhas e depositar novos enfeites no túmulo cercado por pedrinhas brancas, no qual já repousam duas almofadinhas coloridas.
“Jamais te esqueceremos”, diz a placa de madeira fincada por Carolina no gramado fofo.
Emocionada, a mulher funga e conta que o falecido estava na família desde a mais tenra idade. “Era como se fosse um filho meu”, define. O merecedor de tanto amor e pranto morreu no dia 27 de fevereiro de 2009, aos 13 anos de idade. Em vida, foi um cachorro da raça poodle que atendia pelo nome de Puff.
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Assim como Carolina, cerca de 100 pessoas visitam o Cemitério e Crematório de Animais Parque São Francisco de Assis ao longo de todo o dia 2 de novembro.
Inaugurado há 15 anos, o local é um dos poucos do estado de São Paulo construídos especialmente para abrigar os corpos de cães, gatos, pássaros, porquinhos da índia, furões e iguanas que morreram na função de queridos animais de estimação.
O empreendimento é tocado por Pedro Megda e seu pai, um antigo criador de cachorros de raça que percebeu a lacuna que existia no mercado brasileiro ao assistir um programa de televisão sobre cemitérios para animais no exterior.
Hoje, o cemitério e crematório possui 950 pets enterrados em jazigos individuais, coletivos e em gavetas nas paredes. Com cinco funcionários, a empresa é responsável por recolher o animal falecido em clínicas e residências de todo o estado. “Nós oferecemos um serviço para aqueles que realmente amam e não gostariam de jogar o corpo do bicho no lixo ou em um aterro”, explica o rapaz de cerca de 1,70 metro, de topete, vestido com camiseta preta e calça jeans.
Levantamento feito pelo Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGC-USP) em 2008 revelou que 60% dos animais de estimação são enterrados pelos próprios donos em quintais ou terrenos baldios, 20% são jogados na rua, 13% entregues para clínicas veterinárias e 7% jogados em sacos de lixo.
Caso seja dispensado sem o devido cuidado, o corpo do animal pode contaminar o solo e o lençol freático com necrochorume, líquido produzido pela decomposição e rico em substâncias tóxicas e bactérias. Caso o necrochorume contamine o ambiente, pode causar doenças como tétano e hepatite. No cemitério de animais de Campinas, porém, por uma quantia entre 100 e 350 reais, o dono tem direito a uma vala de 60 centímetrosde profundidade, caixão e um pequeno funeral para seu bichinho.
O velório
Na manhã ensolarada, a sala do velório era ocupada por um caixão simples de madeira, no qual descansava o corpo de um pequeno cão da raça dachshund, adornado por folhas de eucalipto. “É para disfarçar o cheiro”, revela o funcionário Francisco Jorge, 33 anos. Figura simpática de boné, camiseta cinza com o logotipo do cemitério e sem um dente da frente, Jorge conta que costuma colocar folhas de jornal embaixo do corpinho, com cuidado para levantar a cabeça do animal e preencher o espaço com folhas de eucalipto e flores primavera cor-de-rosa. “Fica que nem caixão de gente”, gaba-se ele que, antes de enterrar cães e gatos, “atendeu ao público” em uma rede de supermercados por 16 anos.
É Francisco o responsável por ajudar nos velórios, abrir as covas e plantar pequenas flores sobre os túmulos, hábito que o faz lembrar de sua avó.
“Ela vivia cuidando das plantinhas dela. Nos primeiros dias trabalhando aqui, ela não saía da minha lembrança”, arrepia-se ele.
Francisco também presta assistência quando aparece algum cliente mais sensível. “Uma vez, uma senhora grávida desmaiou”, lembra ele, que prontamente ofereceu água com açúcar e um lugar para a gestante sentar.
Outro causo contado por ele é a chegada de seis homens altos e fortes no meio da tarde, aos gritos. A comoção era pela morte de um pastor alemão — “lindo” —, falecido aparentemente pela falta de cuidados por parte da namorada de um deles. “Ele deu tanto grito, bateu tanto nas paredes e xingou tanto a namorada que eu fiquei até com medo”, ri o funcionário.
Por fim, o grandalhão também desfaleceu e foi servido com sombra e água com açúcar pelo coveiro. De acordo com Francisco, a hora da dor não conhece gênero: homens e mulheres pranteiam seus pets com a mesma intensidade. “O máximo que eu posso fazer para ajudar eu faço.”
Há alguns anos, a dor dos visitantes era também amenizada pela presença do boxer branco Bob, cachorro de estimação da família Megda. Trazido da casa da família em Monte Verde (MG) para o cemitério porque fugia demais, era o xodó do Parque São Francisco de Assis. Seus filhotes, frutos do cruzamento de Bob com outra cadela boxer encontrada machucada nas redondezas, eram também distribuídos entre aqueles que desejassem um novo cãozinho para suprir a necessidade do falecido.
Eternizado em antigas reportagens enquadradas no escritório, o boxer costumava acompanhar os cortejos da sala do velório até as covas, pular nas pessoas e fazer muita festa. “Ele ajudava a descontrair o ambiente”, lembra Pedro, cujo companheiro hoje descansa em um jazigo coletivo, no lado esquerdo do cemitério, ao lado dos outros cachorros da família.
Muitos, porém, recusam a adoção de novos animais de estimação. A jornalista Neide Maria da Silva, 53 anos, não pretende arranjar um bichinho tão cedo: seu poodle Nicky morreu há menos de dez dias, aos 14 anos de idade.
“Para mim, ele era uma pessoa da família”, assegura ela. Ao lado do filho, Neide conta que, desde que ficou doente e precisou passar por uma cirurgia, Nicky era um companheiro fiel. “Quando eu estava na cama, ele não saía do lado nem um minuto, era um vigia constante mesmo”, recorda-se, apoiada em uma muleta. Neide pretende construir um jazigo ainda mais bonito para seu cachorro, com direito a mármore branco e foto com moldura de porcelana.
‘Descansa, corpinho’
Segundo estatísticas coletadas por Pedro, são enterrados entre nove e doze animais no Cemitério Parque São Francisco de Assis todos os dias. A grande maioria deles é SRD, sigla técnica para “sem raça definida” e eufemismo para “vira-lata”.
A segunda raça mais enterrada lá é a boxer, seguida pelos poodles e rottweilers. Apesar de predominantes, os cães dividem o espaço com gatos e passarinhos. Um dos túmulos mais suntuosos pertence ao gato persa Branquinho, cujo jazigo é de mármore branco, adornado por uma foto do felino em pose orgulhosa. Guiados por Francisco, chegamos até o túmulo do casal de calopsitas Nina e Tutuco, mortos com dois meses de diferença. “Os donos contaram que um não aguentou de saudade do outro”, explica o funcionário.
O cemitério de animais de Campinas assemelha-se a um grande jardim, com grama verde recém-aparada escapando entre os túmulos. Pequenas estátuas coloridas de cogumelos e sapos dividem espaço com estatuetas de São Francisco de Assis, santo padroeiro dos animais. Muitos não economizam para dar um lar adequado para o animal de estimação falecido.
O dono da empresa conta que há quem gaste até mil reais com a construção do jazigo, feito com materiais nobres como mármore e miracema. Um dos túmulos mais curiosos é o de Thoby, feito com ladrilho azul-escuro e adornado com a estátua de um sapinho, com a inscrição “Descansa, corpinho”. Nascido em 27 de março de 1983, Thoby só descansou 23 anos depois, em 20 de dezembro de 2006. A expectativa média de vida de cachorros fica em torno de 15 anos.
Além do Dia de Finados, a virada do ano também costuma ser um dia movimentado no cemitério, que fica aberto todos os dias do ano, até as 18 horas. Segundo Pedro, a disponibilidade é necessária para melhor atender os clientes.
Não é para menos — uma senhora costuma visitar seu cachorrinho todos os dias, faça chuva ou faça sol, desde o dia de sua morte, em junho de 2010. “Ela mora em Sumaré (uma cidade vizinha), então todos os dias pega um ônibus para vir para cá”, conta Pedro. A senhora zela pelo túmulo de Nego, cuja placa não deixa dúvidas do apreço dispensado pela dona: “Meu amorzinho”.

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