terça-feira, 21 de setembro de 2010

Depois do fim

O período de recuperação após uma perda significativa, ao qual pouco se dá atenção em uma sociedade que evita encarar sua condição de mortal.

Por Luciana Romagnolli

Sem velórios prolongados nem familiares sustentando o preto em seus trajes por meses ou anos a fio, o luto perdeu espaço de expressão na atualidade. Se pouco se fala dele, é porque qualquer assunto relacionado à morte vira tabu em uma sociedade em que se evita, com tantas distrações quanto possíveis, encarar a condição de mortal do ser humano, e na qual o sofrimento muitas vezes relacionado ao fracasso e à fragilidade, coloca o enlutado na posição de “incômodo” para quem não quer ser “contaminado” pela dor alheia.

O luto, contudo, é uma reação natural e esperada ao rompimento de um vínculo. Um processo de elaboração de uma perda significativa, que não se aplica apenas a casos de morte, mas também a outras situações de privação irreversíveis, como separações, desemprego e aposentadoria, variando de acordo com a intensidade do apego. Sua negação, sim, pode ser patológica.

“Lidar bem com o luto significa poder enfrentar os sentimentos evocados pela perda, a nova realidade que esta impõe e também poder ter momentos de evitar a dor e voltar-se para a vida”, diz Luciana Mazorra, doutora em Psicologia Clínica e diretora do 4 Estações – Instituto de Psicologia sediado em São Paulo.

Durante essa fase de readaptação à realidade, o luto é vivenciado em várias áreas da vida, produzindo efeitos emocionais, comportamentais, físicos e sociais, como alterações na alimentação e no sono, irritabilidade, isolamento ou depressão. Não se trata, no entanto, de um período apenas de baixos, mas de oscilações. “Leva tempo entre esses dois movimentos, a vivência de uma ampla gama de sentimentos e reações enquanto, gradualmente, a dor ocupa um espaço menos central na vida do enlutado, ao passo que o espaço dado a novos projetos e interesses é incrementado”, explica Luciana.

O tempo de elaboração do que aconteceu e das implicações na vida de quem ficou foi chamado por Freud de “trabalho de luto”. Para o pai psicanálise, equivale a “sepultar o morto dentro de si”. Pode ser agudo, quando vivido imediatamente após a perda, ou crônico (a forma patológica), nas situações de inaceitação – esclarece o professor e doutor em Sociologia Edmundo Gaudêncio, da Universidade Federal de Campina Grande e da Universidade Estadual da Paraíba.

Partindo de Freud, um outro psicanalista, John Bowlby, dividiu as etapas do luto em três. A começar pelo estágio de desespero e apatia, no qual é nítido o abatimento do enlutado, seguido pelo estágio de desorganização da vida (familiar, social e produtiva) até, por fim, a aceitação.

Já a mais propagada distinção, feita pela psiquiatra Elizabeth Kubler-Ross, compreende cinco fases: negação, barganha, raiva, depressão e aceitação. “É muito comum que o enlutado apresente reações de choque e negação de início, como se precisasse de um tempo para digerir a informação da morte. Em seguida, pode manifestar raiva e protestar diante de tal realidade, como se tentasse revertê-la, ao chorar e chamar pela pessoa perdida. Ao perceber que a pessoa não retornará, a dor é muito intensa, e o enlutado precisa de tempo para aceitar a perda, transformar sua relação com a pessoa perdida e sua própria identidade sem esta pessoa”, descreve Luciana Mazorra.

Apesar de ser esse o desenvolvimento mais esperado, a psicóloga chama a atenção para o fato de que cada um experimenta o processo à sua maneira, inclusive podendo passar pelas etapas diversas vezes, e por isso é importante evitar o “enquadramento” do enlutado.

“Atualmente, os estudiosos não trabalham mais com a concepção de fases do luto, pelo risco de avaliarmos injusta e preconceituosamente a condição da pessoa de uma maneira genérica, deixando de lado suas particularidades”, reforça a professora Maria Helena Pereira Franco, cooordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto – LELu, da PUC-SP, pioneiro em pesquisas sobre temas relativos ao luto no país, desde 1996.

Entre as particularidades de cada caso, há uma série de fatores envolvidos que pode complicar ou estender o luto. Uma morte violenta, repentina, muito sofrida ou que inverta a ordem natural das coisas (filhos que morrem antes dos pais, por exemplo) tende a ser agravante. Mas há mais em jogo: relações de dependência com o morto, o histórico de perdas do enlutado, suas crenças espirituais e o apoio recebido.
“Um fator que com muita frequência melhora a dor de uma perda trágica é o perdão da vítima enlutada àquele que lhe produziu o luto”, comenta Gaudêncio. No sentido contrário, a impossibilidade de prantear e sepultar o cadáver ou casos de perdas não reconhecidas socialmente, como os abortos, potencializam o sofrimento.

Luciana Mazorra acrescenta que a elaboração do luto é mais efetiva quando se consegue “atribuir sentido à perda” – no que podem ajudar atividades como conversar sobre o que aconteceu, escrever, fazer psicoterapia ou participar de grupos de autoajuda, como o curitibano Amigos Solidários na Dor do Luto (ler reportagem na página 2). Há também quem sublime a dor da falta transformando-a em arte ou se dedicando a causas socais.

Identidade revista

Ao elaborar ou “metabolizar” a perda, o enlutado passa por um processo de revisão da própria identidade agora sem aquela pessoa que se foi, e de transformação da relação que mantinha com o morto e consigo mesmo. “Sua identidade não é a mesma, a vida não é a mesma e vai ser muito importante que se dê conta das mudanças para conviver com a realidade de forma saudável”, observa a psicóloga Maria Helena.

Como o caso da viúva que terá de se apropriar dessa nova identidade social, descobrir quem ela é sem o marido, perceber que papel desempenhava na relação e desenvolver novas competências, redefinindo suas expectativas de futuro e um projeto de vida dali em diante. “É um processo gradual e árduo, mas que também pode ser um momento rico e de descobertas pessoais quando se recebe o apoio necessário para enfrentá-lo”, avalia Luciana Mazorra.

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