terça-feira, 21 de setembro de 2010

Homenagem :: Roberto Luis Troster

Valor Econômico - 21/07/2010
 

CLT ajuda a manter o emprego. Para cada trabalhador na produção ou nas vendas outros são necessários para cumprir a lei
Ned Ludd tinha uma preocupação meritória que era a de preservar postos de trabalho e dessa forma fazer com que operários pudessem manter seu modo de vida. Para esse nobre propósito, propunha a destruição das máquinas que causavam desemprego na Inglaterra que estava se industrializando.
A nova tecnologia estava acabando com um modo de produzir de vários séculos; a máquina a vapor e o tear automático ilustram o perigo enfrentado na época. Muitos de seus seguidores, os ludistas, ao fazerem justiça com as próprias mãos, foram perseguidos, alguns presos e deportados para a Austrália, e houve até condenados à morte. Mas suas ideias sobreviveram e cruzaram o Atlântico.
No Brasil, a influência dos neoludistas é considerável. Usam métodos não violentos e mais efetivos que não só evitam o desemprego, como também geram mais cargos profissionais. Todas suas ações são amparadas na lei e dessa forma não terão o mesmo fim que seus antecessores. Alguns exemplos ilustram como promovem o bem do país.
Um caso emblemático do pensamento neoludista é o tratamento dado a alterações na vida econômica. Como novas empresas criam produtos e serviços que acabam por causar desemprego nas já existentes, a solução é bloquear sua entrada em operação. Para tanto, são colocados vários procedimentos burocráticos de forma a dificultar o início de seu funcionamento. Um levantamento do Banco Mundial mostra que são necessários 16 procedimentos diferentes para abrir uma empresa no Brasil, um dos mais elevados do mundo. Lembrando que, quanto mais complicadas forem as exigências, mais burocratas serão necessários para aferir sua validez.
Caso o empreendedor persevere e mesmo assim consiga fazer a empresa entrar em operação, terá que dedicar 2.600 horas por ano apenas para preencher a documentação e as guias para pagar os impostos. Com isso três objetivos são alcançados. Um é que é necessário empregar para o cumprimento das obrigações tributárias; outro é que, à medida que aumenta o número de exigências e sua complexidade, é mandatório ter mais fiscais; e o terceiro é que com mais impostos haverá mais recursos para pagar o funcionalismo.
A legislação trabalhista é outro exemplo de como a lei gera empregos. É complexa, abrangente e minuciosa, a consolidação de todas as normas. A CLT tem quase mil artigos aos quais devem ser adicionados os das convenções coletivas. Com isso, são necessários funcionários nas empresas para verificar o atendimento de suas exigências e dezenas de milhares de advogados e juízes para solucionar as divergências. Desse modo os empregos são multiplicados, pois para cada trabalhador na produção ou nas vendas outros são necessários para cumprir a legislação.
Os neoludistas também têm ações visando o bem do setor privado. O que aconteceu nos cartórios ilustra o ponto. Há cinco anos eram necessários, de acordo com o Banco Mundial, 14 procedimentos, 42 dias e 2% do valor da propriedade para sua transferência; conseguiu-se manter o número de procedimentos e o tempo médio, mas aumentou-se o custo para 2,7% beneficiando os trabalhadores e titulares dos cartórios. É uma instituição do tempo de Império que está sendo valorizada.
A lista de exemplos é extensa e alguns dos benefícios são mensuráveis. Brasília, a cidade mais favorecida por sua inspiração, tem uma renda por habitante que é o dobro da média nacional. É uma prova empírica que evitar mudanças é benéfico. O Banco Mundial prepara uma classificação sobre a facilidade de fazer negócios (Doing Business) em diferentes países. O Brasil regrediu algumas posições. A falha está em não perceber que quanto mais atrás, menos muda o país e tudo fica tudo como está.
Há oposição às políticas neoludistas, mas é pouca. A explicação mais razoável para as críticas é de algumas pessoas que observam que, na média, os salários do setor privado são inferiores aos do público e criticam. Falam em competitividade, mas não são competentes o suficiente para conseguir um padrinho político. Pura inveja.
Os críticos mais conhecidos são os neoliberais, que propõem mais produtividade à economia brasileira. Um risco a ser evitado, pois se a quantidade de produto por trabalhador aumentar serão necessários menos empregados, um perigo para o qual Ned Ludd alertava.
Outra sugestão dos neoliberais é que se aumente a idade de aposentadoria dos trabalhadores. Não entendem que cada novo aposentado é mais uma vaga a ser preenchida, leia-se um desempregado a menos. Mantendo-se o valor das aposentadorias igual aos salários da ativa, conseguem-se mais empregos sem perda de renda para os que se retiram em idade precoce. Essa falta de compreensão desses pensadores elucida sua baixa popularidade.
Algumas propostas levantadas são absurdas, como a de dar mais eficiência ao setor público. Seus autores não percebem que se isso acontecesse, dezenas de milhares de funcionários ficariam de braços cruzados e edifícios inteiros seriam abandonados. Seria um cataclismo social se fosse acatada.
A sorte do país é que a Secretaria de Assuntos Estratégicos está consciente desses riscos e coloca no seu diagnóstico para o planejamento do Brasil em 2022 que "As políticas neoliberais ...levaram ao agravamento da pobreza". Uma visão clara de que os princípios ludistas orientam as políticas do futuro do Brasil e que as críticas não alterarão seu rumo.
Os programas das campanhas dos candidatos a presidente também não mostram um compromisso em combater os nobres ideais neoludistas. As promessas são de mais empregos em vez de mais empresas, preocupam-se com o índice de desemprego, e devem estar conscientes que o de mortalidade de empresas não tem significado econômico. Tudo indica que é razoável supor que a influência das ideias expostas continue no próximo governo. É algo que tranquiliza.
Considerando a contribuição positiva de Ned Ludd, a proposta deste artigo é que ele seja homenageado. Tem que ser algo grandioso, proporcional a seu legado. Poder-se-ia até tentar fazer algo em conjunto com outras nações limítrofes que também seguem seus princípios. Um feriado é o mínimo, o dia do Ludismo. Se Tiradentes que era contra os impostos tem feriado, nada mais justo de que alguém a favor também tenha. Será um reconhecimento mais que merecido.
Valor Econômico - 21/07/2010
 

CLT ajuda a manter o emprego. Para cada trabalhador na produção ou nas vendas outros são necessários para cumprir a lei
Ned Ludd tinha uma preocupação meritória que era a de preservar postos de trabalho e dessa forma fazer com que operários pudessem manter seu modo de vida. Para esse nobre propósito, propunha a destruição das máquinas que causavam desemprego na Inglaterra que estava se industrializando.
A nova tecnologia estava acabando com um modo de produzir de vários séculos; a máquina a vapor e o tear automático ilustram o perigo enfrentado na época. Muitos de seus seguidores, os ludistas, ao fazerem justiça com as próprias mãos, foram perseguidos, alguns presos e deportados para a Austrália, e houve até condenados à morte. Mas suas ideias sobreviveram e cruzaram o Atlântico.
No Brasil, a influência dos neoludistas é considerável. Usam métodos não violentos e mais efetivos que não só evitam o desemprego, como também geram mais cargos profissionais. Todas suas ações são amparadas na lei e dessa forma não terão o mesmo fim que seus antecessores. Alguns exemplos ilustram como promovem o bem do país.
Um caso emblemático do pensamento neoludista é o tratamento dado a alterações na vida econômica. Como novas empresas criam produtos e serviços que acabam por causar desemprego nas já existentes, a solução é bloquear sua entrada em operação. Para tanto, são colocados vários procedimentos burocráticos de forma a dificultar o início de seu funcionamento. Um levantamento do Banco Mundial mostra que são necessários 16 procedimentos diferentes para abrir uma empresa no Brasil, um dos mais elevados do mundo. Lembrando que, quanto mais complicadas forem as exigências, mais burocratas serão necessários para aferir sua validez.
Caso o empreendedor persevere e mesmo assim consiga fazer a empresa entrar em operação, terá que dedicar 2.600 horas por ano apenas para preencher a documentação e as guias para pagar os impostos. Com isso três objetivos são alcançados. Um é que é necessário empregar para o cumprimento das obrigações tributárias; outro é que, à medida que aumenta o número de exigências e sua complexidade, é mandatório ter mais fiscais; e o terceiro é que com mais impostos haverá mais recursos para pagar o funcionalismo.
A legislação trabalhista é outro exemplo de como a lei gera empregos. É complexa, abrangente e minuciosa, a consolidação de todas as normas. A CLT tem quase mil artigos aos quais devem ser adicionados os das convenções coletivas. Com isso, são necessários funcionários nas empresas para verificar o atendimento de suas exigências e dezenas de milhares de advogados e juízes para solucionar as divergências. Desse modo os empregos são multiplicados, pois para cada trabalhador na produção ou nas vendas outros são necessários para cumprir a legislação.
Os neoludistas também têm ações visando o bem do setor privado. O que aconteceu nos cartórios ilustra o ponto. Há cinco anos eram necessários, de acordo com o Banco Mundial, 14 procedimentos, 42 dias e 2% do valor da propriedade para sua transferência; conseguiu-se manter o número de procedimentos e o tempo médio, mas aumentou-se o custo para 2,7% beneficiando os trabalhadores e titulares dos cartórios. É uma instituição do tempo de Império que está sendo valorizada.
A lista de exemplos é extensa e alguns dos benefícios são mensuráveis. Brasília, a cidade mais favorecida por sua inspiração, tem uma renda por habitante que é o dobro da média nacional. É uma prova empírica que evitar mudanças é benéfico. O Banco Mundial prepara uma classificação sobre a facilidade de fazer negócios (Doing Business) em diferentes países. O Brasil regrediu algumas posições. A falha está em não perceber que quanto mais atrás, menos muda o país e tudo fica tudo como está.
Há oposição às políticas neoludistas, mas é pouca. A explicação mais razoável para as críticas é de algumas pessoas que observam que, na média, os salários do setor privado são inferiores aos do público e criticam. Falam em competitividade, mas não são competentes o suficiente para conseguir um padrinho político. Pura inveja.
Os críticos mais conhecidos são os neoliberais, que propõem mais produtividade à economia brasileira. Um risco a ser evitado, pois se a quantidade de produto por trabalhador aumentar serão necessários menos empregados, um perigo para o qual Ned Ludd alertava.
Outra sugestão dos neoliberais é que se aumente a idade de aposentadoria dos trabalhadores. Não entendem que cada novo aposentado é mais uma vaga a ser preenchida, leia-se um desempregado a menos. Mantendo-se o valor das aposentadorias igual aos salários da ativa, conseguem-se mais empregos sem perda de renda para os que se retiram em idade precoce. Essa falta de compreensão desses pensadores elucida sua baixa popularidade.
Algumas propostas levantadas são absurdas, como a de dar mais eficiência ao setor público. Seus autores não percebem que se isso acontecesse, dezenas de milhares de funcionários ficariam de braços cruzados e edifícios inteiros seriam abandonados. Seria um cataclismo social se fosse acatada.
A sorte do país é que a Secretaria de Assuntos Estratégicos está consciente desses riscos e coloca no seu diagnóstico para o planejamento do Brasil em 2022 que "As políticas neoliberais ...levaram ao agravamento da pobreza". Uma visão clara de que os princípios ludistas orientam as políticas do futuro do Brasil e que as críticas não alterarão seu rumo.
Os programas das campanhas dos candidatos a presidente também não mostram um compromisso em combater os nobres ideais neoludistas. As promessas são de mais empregos em vez de mais empresas, preocupam-se com o índice de desemprego, e devem estar conscientes que o de mortalidade de empresas não tem significado econômico. Tudo indica que é razoável supor que a influência das ideias expostas continue no próximo governo. É algo que tranquiliza.
Considerando a contribuição positiva de Ned Ludd, a proposta deste artigo é que ele seja homenageado. Tem que ser algo grandioso, proporcional a seu legado. Poder-se-ia até tentar fazer algo em conjunto com outras nações limítrofes que também seguem seus princípios. Um feriado é o mínimo, o dia do Ludismo. Se Tiradentes que era contra os impostos tem feriado, nada mais justo de que alguém a favor também tenha. Será um reconhecimento mais que merecido.

Valor Econômico - 21/07/2010


CLT ajuda a manter o emprego. Para cada trabalhador na produção ou nas vendas outros são necessários para cumprir a lei
Ned Ludd tinha uma preocupação meritória que era a de preservar postos de trabalho e dessa forma fazer com que operários pudessem manter seu modo de vida. Para esse nobre propósito, propunha a destruição das máquinas que causavam desemprego na Inglaterra que estava se industrializando.
A nova tecnologia estava acabando com um modo de produzir de vários séculos; a máquina a vapor e o tear automático ilustram o perigo enfrentado na época. Muitos de seus seguidores, os ludistas, ao fazerem justiça com as próprias mãos, foram perseguidos, alguns presos e deportados para a Austrália, e houve até condenados à morte. Mas suas ideias sobreviveram e cruzaram o Atlântico.
No Brasil, a influência dos neoludistas é considerável. Usam métodos não violentos e mais efetivos que não só evitam o desemprego, como também geram mais cargos profissionais. Todas suas ações são amparadas na lei e dessa forma não terão o mesmo fim que seus antecessores. Alguns exemplos ilustram como promovem o bem do país.
Um caso emblemático do pensamento neoludista é o tratamento dado a alterações na vida econômica. Como novas empresas criam produtos e serviços que acabam por causar desemprego nas já existentes, a solução é bloquear sua entrada em operação. Para tanto, são colocados vários procedimentos burocráticos de forma a dificultar o início de seu funcionamento. Um levantamento do Banco Mundial mostra que são necessários 16 procedimentos diferentes para abrir uma empresa no Brasil, um dos mais elevados do mundo. Lembrando que, quanto mais complicadas forem as exigências, mais burocratas serão necessários para aferir sua validez.
Caso o empreendedor persevere e mesmo assim consiga fazer a empresa entrar em operação, terá que dedicar 2.600 horas por ano apenas para preencher a documentação e as guias para pagar os impostos. Com isso três objetivos são alcançados. Um é que é necessário empregar para o cumprimento das obrigações tributárias; outro é que, à medida que aumenta o número de exigências e sua complexidade, é mandatório ter mais fiscais; e o terceiro é que com mais impostos haverá mais recursos para pagar o funcionalismo.
A legislação trabalhista é outro exemplo de como a lei gera empregos. É complexa, abrangente e minuciosa, a consolidação de todas as normas. A CLT tem quase mil artigos aos quais devem ser adicionados os das convenções coletivas. Com isso, são necessários funcionários nas empresas para verificar o atendimento de suas exigências e dezenas de milhares de advogados e juízes para solucionar as divergências. Desse modo os empregos são multiplicados, pois para cada trabalhador na produção ou nas vendas outros são necessários para cumprir a legislação.
Os neoludistas também têm ações visando o bem do setor privado. O que aconteceu nos cartórios ilustra o ponto. Há cinco anos eram necessários, de acordo com o Banco Mundial, 14 procedimentos, 42 dias e 2% do valor da propriedade para sua transferência; conseguiu-se manter o número de procedimentos e o tempo médio, mas aumentou-se o custo para 2,7% beneficiando os trabalhadores e titulares dos cartórios. É uma instituição do tempo de Império que está sendo valorizada.
A lista de exemplos é extensa e alguns dos benefícios são mensuráveis. Brasília, a cidade mais favorecida por sua inspiração, tem uma renda por habitante que é o dobro da média nacional. É uma prova empírica que evitar mudanças é benéfico. O Banco Mundial prepara uma classificação sobre a facilidade de fazer negócios (Doing Business) em diferentes países. O Brasil regrediu algumas posições. A falha está em não perceber que quanto mais atrás, menos muda o país e tudo fica tudo como está.
Há oposição às políticas neoludistas, mas é pouca. A explicação mais razoável para as críticas é de algumas pessoas que observam que, na média, os salários do setor privado são inferiores aos do público e criticam. Falam em competitividade, mas não são competentes o suficiente para conseguir um padrinho político. Pura inveja.
Os críticos mais conhecidos são os neoliberais, que propõem mais produtividade à economia brasileira. Um risco a ser evitado, pois se a quantidade de produto por trabalhador aumentar serão necessários menos empregados, um perigo para o qual Ned Ludd alertava.
Outra sugestão dos neoliberais é que se aumente a idade de aposentadoria dos trabalhadores. Não entendem que cada novo aposentado é mais uma vaga a ser preenchida, leia-se um desempregado a menos. Mantendo-se o valor das aposentadorias igual aos salários da ativa, conseguem-se mais empregos sem perda de renda para os que se retiram em idade precoce. Essa falta de compreensão desses pensadores elucida sua baixa popularidade.
Algumas propostas levantadas são absurdas, como a de dar mais eficiência ao setor público. Seus autores não percebem que se isso acontecesse, dezenas de milhares de funcionários ficariam de braços cruzados e edifícios inteiros seriam abandonados. Seria um cataclismo social se fosse acatada.
A sorte do país é que a Secretaria de Assuntos Estratégicos está consciente desses riscos e coloca no seu diagnóstico para o planejamento do Brasil em 2022 que "As políticas neoliberais ...levaram ao agravamento da pobreza". Uma visão clara de que os princípios ludistas orientam as políticas do futuro do Brasil e que as críticas não alterarão seu rumo.
Os programas das campanhas dos candidatos a presidente também não mostram um compromisso em combater os nobres ideais neoludistas. As promessas são de mais empregos em vez de mais empresas, preocupam-se com o índice de desemprego, e devem estar conscientes que o de mortalidade de empresas não tem significado econômico. Tudo indica que é razoável supor que a influência das ideias expostas continue no próximo governo. É algo que tranquiliza.
Considerando a contribuição positiva de Ned Ludd, a proposta deste artigo é que ele seja homenageado. Tem que ser algo grandioso, proporcional a seu legado. Poder-se-ia até tentar fazer algo em conjunto com outras nações limítrofes que também seguem seus princípios. Um feriado é o mínimo, o dia do Ludismo. Se Tiradentes que era contra os impostos tem feriado, nada mais justo de que alguém a favor também tenha. Será um reconhecimento mais que merecido.

O capitalismo é moral

André Comte-Sponville, filósofo francês
Publicado em  10/07/2010 | Rogerio Waldrigues Galindo

O capitalismo é moral?
A pergunta foi o ponto central de uma série de conferências que o filósofo francês André Comte-Sponville realizou pela Europa. O resultado se transformou num livro de mesmo nome (Martins Fontes, 223 páginas. Tradução de Eduardo Brandão).

A conclusão de Sponville é de que o sistema não é moral nem imoral: o capitalismo tem sua lógica interna, que é de ordem diferente da moral. Enquanto a moral pergunta o que é certo e o que é errado, o capitalismo tenta responder o que é mais eficiente, mais lucrativo. Para ele, resta a nós tornar a sociedade capitalista mais justa. Em entrevista por e-mail, o filósofo explicou seus pontos de vista.

A sua palestra sobre capitalismo parece aborrecer um bocado de pessoas. Especialmente empresários parecem escandalizados quando ouvem que o capitalismo “não é moral”. Por que isso acontece?

Porque seria mais confortável para eles pensar o contrário! Se o capitalismo fosse moral, os diretores de empresas fariam o trabalho mais belo do mundo: eles criariam virtude ao mesmo tempo que riqueza, eles cuidariam de sua saúde ao mesmo tempo que fariam sua fortuna. Não é de espantar que eles queiram acreditar nisso! É preciso dizer que essas questões me foram propostas sobretudo pelo mundo empresarial, onde os dirigentes, porque isso lhes convém, estão massivamente convencidos de que o capitalismo é moral. Eles também me acharam muito severo com nosso sistema econômico. Na esquerda (falo disso na nova edição de meu livro, com um longo posfácio inédito, que não sei se já foi publicado no Brasil), é antes o inverso: as pessoas estão convencidas de que o capitalismo é imoral, e me reprovam de ser indulgente demais com ele! Isso não prova que eu tenho razão, mas salienta a singularidade de meu ponto de vista. O que mostro em meu livro é que o capitalismo não é moral: ele não funciona para a virtude, a generosidade ou o desinteresse, mas, ao contrário, para o interesse pessoal ou familiar. Digamos a palavra: o capitalismo funciona para o egoísmo. É por isso que ele funciona tão bem (o egoísmo é a principal força motora) e é por isso que ele não (nunca) é suficiente! O egoísmo é formidável para criar a riqueza, mas isso nunca foi suficiente para fazer uma civilização, nem mesmo uma sociedade que seja humanamente aceitável . Então o capitalismo não é moral. Ele é imoral? Tampouco. Ocupar-se de seus interesses e dos de sua família não é um erro! Querer ganhar dinheiro, contanto que se respeite a lei, não é proibido! Não tenhamos medo de dizer: o egoísmo faz parte dos direitos do homem. O capitalismo não é, portanto, nem moral nem imoral: ele é amoral, dando ao prefixo “a” seu sentido puramente privativo (de privação). Não conte com o mercado para ser moral no seu lugar, nem com a moral para criar riqueza!

O senhor defende que após a queda da União Soviética o capitalismo não podia mais se justificar como uma oposição a outro sistema e que algumas pessoas tentaram justificá-lo dizendo que o sistema é “bom” e “moral” em si mesmo. O senhor compara isso a um processo religioso. Como está essa situação hoje?

A União Soviética era uma contraposição que valorizava o capitalismo. Desde que essa contraposição se dissolveu, o capitalismo tenta encontrar uma justificativa interna: ele seria o triunfo da liberdade, do esforço, do mérito, da criatividade... Uma espécie de paraíso sobre a terra! Os pobres julgarão. A verdade é que o capitalismo é um sistema economicamente eficaz, ecologicamente perigoso e moralmente injusto. Evidentemente, tudo seria mais simples se a moral, a economia e a ecologia andassem sempre na mesma direção. Mas graças a que milagre tal coisa aconteceria? A única maneira de articular essas três dimensões é fazer política! Isso passa pela militância, mas também pelo governo, o Parlamento e o direito. Se a economia fosse moral, não teríamos necessidade de Estado. Não é esse o caso. É por isso que temos necessidade de política. Os bons sentimentos jamais foram suficientes para ganhar uma eleição e ainda menos para governar de forma eficaz!

O senhor defende que, se nós não podemos contar com o capitalismo para ser moral, nós precisamos fazer as coisas serem morais nós mesmos. Isso pode ser feito por meio de políticas sociais e de redistribuição de renda? Nesse sentido, o modelo social-democrata de países nórdicos como a Suécia é mais “moral” do que o modelo de capitalismo dos EUA?

Não estou aqui para distribuir boas e más características, nem para dar certificado de moralidade a uns ou outros! Sou um social-democrata: politicamente sinto-me portanto muito mais próximo do modelo escandinavo do que do modelo americano. Mas cuidado para não confundir o combate político, que opõe partidos e ideologias, com um combate moral, que oporia os bons e os malvados. É verossímel que (o economista liberal Friedrich) Hayek, por exemplo, tivesse respondido que ele prefere o modelo americano. Não vejo em nome de qual superioridade moral ou intelectual eu pretenderia que a virtude está no meu campo mais que no seu! A moral não é nem de direita nem de esquerda. É por isso que a esquerda e a direita necessitam dela. Quanto à política de redistribuição, sou favorável a ela, e a princípio por questões morais. Isso não me autoriza a condenar moralmente aqueles que querem limitá-la ou reduzi-la. Com o tempo, o problema é mais de saber se a redistribuição é moral (poucas pessoas o contestam) do que se ela é eficaz. Fazerem os ricos pagarem para ajudar o pobres? Moralmente, só posso ser a favor. Exceto quando a pressão fiscal faz os ricos fugirem ou quando ela mutila a economia: nesse caso os pobres são os primeiros a sofrer. É onde a política encontra seus direitos e suas proibições. A moral não substitui lucidez, nem competência, nem eficácia. “Ser de esquerda”, dizia Coluche, “não dispensa (a necessidade de) ser inteligente”.

De todas as “liberdades” do capitalismo, a liberdade de acumulação é a mais criticada pela esquerda. A crítica é de que, se você pode ter tudo o que conseguir, e só o que conseguir, sempre há quem não consiga nada...

Sim!, o capitalismo é um sistema onde se pode enriquecer! É preciso lamentar isso? Não estou certo. Porque enfim, criar a riqueza é a única maneira de fazer recuar a pobreza. O capitalismo é desigual? É verdade. Mas ele é formidavelmente eficaz, e, em um país governado corretamente, mesmo os pobres acabam por tirar proveito disso. Compare o destino da classe operária em 1850, em 1900, em 1950 e hoje. Você verá que, na maior parte dos países, os progressos são consideráveis e, nesta escala de tempo, quase contínuos! Contrariamente àquilo em que frequentemente acreditamos, os ricos não precisam empobrecer os pobres. Ao contrário: quanto mais a pobreza recua, mais o comércio avança, e isso é bom para os ricos! O que me faz pensar no que me dizia um dia um amigo judeu: “Vocês, góis, são bizarros! Vocês creem que o problema é a riqueza. Mas nós, judeus, compreendemos há muito tempo que o problema não é a riqueza, é a pobreza!” No fundo, até que estou de acordo. Alguns, à esquerda, dão a impressão de que não ficarão contentes enquanto ainda haja ricos. Mas todo mundo ficar pobre, seria realmente um progresso? Uma política de esquerda eficaz, do meu ponto de vista, não é aquela que diminui a riqueza, é a que faz recuar a pobreza.

Em outro livro (Bom Dia, Angústia!), o senhor escreveu que nós pensamos no mandamento de Jesus de não termos dinheiro apenas como uma metáfora porque preferimos (ou precisamos) pensar deste jeito. Na sua opinião, a riqueza pessoal é “imoral”?

A questão moral não trata do dinheiro que ganhamos (ter um salário bastante grande não é um defeito), mas do que fazemos com o dinheiro ganho. E quanto a isso, a resposta dos evangelhos é clara: tudo que não damos está perdido e nos perde. O que é imoral não é a riqueza, é o egoísmo. Isso coloca duas questões. A primeira concerne à moral: um rico que não fosse egoísta poderia permanecer rico por muito tempo? A segunda concerne à antropologia: um ser humano que não fosse egoísta seria um ser humano?

A crise financeira do Ocidente mudou algo na maneira como vemos o capitalismo? Mudou a maneira como as coisas são conduzidas?

Muitos economistas me disseram, nesses últimos meses, que meu livro, publicado em 2004, portanto muito antes da crise, era “premonitório”. Isso sem dúvida é um exagero, mas sugere que minhas análises foram mais confirmadas que desmentidas pela crise. Esta crise de fato nos lembra que o capitalismo é amoral, que ele é incapaz de se auto-regular de uma maneira social e moralmente aceitável, enfim, que a moral é também incapaz de regulá-lo. Conclusão: só o direito e a política podem regular eficientemente o capitalismo, submetendo-o a um certo número de coerções externas, o que volta a impor aos mercados um certo número de limites não comerciais “non marchand”: “serviço ou produto” cujo preço não depende do mercado (ex.: serviço público, doméstico)... talvez a melhor equivalência fosse “sem lucro e não lucrativo”, para “non marchande et non marchandables”. Há talvez, no economês, alguma expressão para algo que não possua, digamos, “mais valia”, como o serviço doméstico? e não comerciáveis. É o que os economistas chamam hoje de “o retorno dos Estados”, e é uma boa notícia. Falta encontrar regulações eficazes em uma economia mundializada: isso passa por uma política de escala mundial. É o que se busca no G20, na OMC, no FMI, ou recentemente em Copenhague. Cada um percebe as dificuldades desse processo, que são consideráveis, mas percebe também que não há outra via.

O senhor diz que há uma geração tentando substituir ações políticas por ações morais. Isso é ruim? Por quê?

Porque isso nos condena à impotência. Não tenho nada contra as ações caritativas ou humanitárias, muito pelo contrário. Mas se você contar com elas para transformar a sociedade, você está se enganando. A moral é uma coisa grande, certamente necessária, mas que não substitui a política!

O senhor diz que o erro de Marx foi submeter a economia à moral. E afirma que isso nunca podia ter funcionado. Isso significa que todos os tipos de socialismo estão condenados ao fracasso?

O que está fadado ao fracasso, para mim, é toda forma de política que pretendesse impor o reino da virtude, da generosidade ou do desinteresse, enfim, funcionasse para algo que não o egoísmo. Isso seria querer transformar a humanidade, o que é um sonho totalitário e louco. É em nome da virtude que Saint-Just e Robespierre impuseram o Terror! É em nome do “novo homem” que criou-se o goulag! Resta então inventar um socialismo lúcido, que não peça às pessoas para renunciar aos seus interesses, mas simplesmente ser egoístas juntas e inteligentemente (é o que chamo solidariedade) ao invés de estupidamente e uns contra os outros. Isso ainda é socialismo? Pouco importam as palavras. Digamos que é a versão reformista, liberal e sócio-democrata. É o que alguns, hoje, chamam de social-liberalismo, e a expressão não me incomoda nada.

O senhor realmente acredita que as empresas estão realmente enganando seus consumidores quando dizem que são empresas “morais” ou empresas “cidadãs”?

Por um lado, sim: isso faz parte da comunicação, da publicidade. Mas há também outra coisa: todo mundo prefere defender sua boa consciência. Tanto melhor se isso força nossas empresas a antes prestar contas dos interesses da coletividade. Dito isso, não sonhemos: depende do Estado, e não das empresas, dos cidadãos, e não dos patrões, transformar a sociedade! As empresas estão aí para criar riqueza; o Estado, para criar justiça. É por essa razão que precisamos de ambos!

A sua mensagem é que nós não podemos contar com o capitalismo para ser moral. Assim, é possível crer que ações governamentais podem tornar uma nação mais moral?

Nenhum país é moral: cabe aos indivíduos sê-lo. Por outro lado, há situações moralmente escandalosas (a opressão, a exclusão, a miséria), que um governo digno deste nome deve combater. Desde a crise falamos muito na França sobre “moralizar o capitalismo”. Tudo depende do que compreendemos dessa ideia. Se pretendemos tornar o capitalismo intrinsicamente moral, de forma que ele não funcione mais com o egoísmo mas com a virtude e o desinteresse, isso é evidentemente um desejo edificante, uma mentira e uma ilusão. Ao contrário, se compreendemos por “moralizar o capitalismo” a ideia de lhe impor um certo número de limites externos, então isso não somente é possível, não somente é necessário, como já o fazemos há bastante tempo. Quando proibimos o trabalho das crianças, quando garantimos as liberdades sindicais, quando criamos o imposto sobre o lucro e a seguridade pública, quando sancionamos os abusos das posições dominantes, etc, moralizamos o capitalismo, e isso se fez, cada vez, através da política e do direito. É uma lição para guardar. A política não está aí para fazer a nossa felicidade (nós, e não o Estado, devemos velar sobre ela), mas para combater a infelicidade. A tarefa é considerável: cada um, como cidadão, deve contribuir!
Tradução de Sandra Stropparo

Lucro x Justiça

O sistema capitalista pode ser justo? Pela primeira vez em 200 anos, o mundo Ocidental parece não ter uma alternativa ao modelo de livre mercado

Por Rogerio Waldrigues Galindo
Nenhum espectro ronda a Europa. Pela primeira vez em 200 anos, o capitalismo domina o mundo Ocidental praticamente sem concorrência. Na última vez em que isso aconteceu, antes da invenção do socialismo, no século 19, a situação era absolutamente diferente da atual. Tão diferente que não existia nem mesmo uma palavra para definir o capitalismo. O termo só surgiu como oposição aos outros sistemas criados pelos teóricos.

Na época, a ideia do socialismo surgiu principalmente porque a Revolução Industrial trouxe ao mundo uma situação cruel, que muitas vezes levava ao abuso dos trabalhadores em graus extremos. De lá para cá, muita coisa mudou: na maior parte do mundo, leis foram criadas para impedir abusos e o Estado de bem-estar social surgiu para garantir direitos mínimos aos trabalhadores.
 
Agora, dois séculos depois, o modelo alternativo (comunismo, socialismo, capitalismo de Estado, ou como o queiram chamar) está, no mínimo, adormecido, senão morto. E a pergunta que fica é: sendo o capitalismo a única alternativa, é possível imaginar que ele possa criar uma sociedade justa? Ou, indo mais direto ao ponto: é possível que nasça uma sociedade capitalista em que haja pouca pobreza e onde existam chances iguais para todos?

Fim da História?

Assim que o Muro de Berlim caiu, o clima foi de euforia entre os defensores do capitalismo. Não apenas a solução marxista foi dada como morta: Francis Fukuyama publicou em 1992 um livro afirmando que a História, assim mesmo, com letra maiúscula, havia chegado ao fim. O mundo havia encontrado um modelo liberal bom o suficiente para ser considerado definitivo.

Vinte anos passados, o socialismo se enfraqueceu ainda mais. Apenas ilhas (literais, como Cuba, ou simbólicas, como a Coreia do Norte) praticam algo parecido com o comunismo. No entanto, o capitalismo, mesmo dominante, não ganhou a unanimidade que poderia se esperar. A discussão sobre sua validade, essa não morreu nem está perto disso.

Para teóricos de esquerda, o capitalismo continua condenável como sempre. “A história de pelo menos três séculos do capitalismo mostra que ele produz desigualdade e injustiça social em escala cada vez maior”, afirma Claus Germer, professor de Economia da Universidade Federal do Paraná. “Atualmente cerca de três quartos da população mundial vivem em condições extremamente precárias, representadas por uma combinação de desemprego ou subemprego, subnutrição, analfabetismo, guerra, falta de moradias, falta de saneamento, precária assistência à saúde, falta de acesso à cultura, etc.”

Para ele – assim como para todos os teóricos da esquerda – o capitalismo se baseia na exploração de trabalhadores. O dono da empresa, o capitalista, faz dinheiro em cima do trabalho de terceiros. “A teoria econômica demonstrou, já há cerca de duzentos anos, que o salário paga apenas uma parte do trabalho prestado pelo trabalhador, a outra parte o trabalhador presta gratuitamente, e o valor que o seu trabalho cria nesta parte constitui a fonte do lucro do empregador. As empresas mais significativas de todos os setores empregam atualmente milhares de trabalhadores cada uma, e se apropriam portanto de um grande volume de trabalho gratuito. É isto que se denomina exploração do homem pelo homem.”

Inovação

Há quem pense o exato oposto. É o caso do professor José Guilherme Silva Vieira, da UFPR. Ele admite desde o princípio que o capitalismo não surgiu para resolver qualquer problema social. Nem é essa a sua lógica. Mas ele acredita que, por vias indiretas, o modelo acaba levando a um desenvolvimento coletivo.
“Pense num rei do século 16 na Europa”, diz ele, para deixar claro seu argumento. “É possível que até mesmo alguém que more em uma favela hoje tenha melhores condições de vida do que ele”, opina. Exagero? Talvez não. Hoje, a medicina garante vida mais longa; a higiente e o saneamento básico garantem uma vida mais saudável; serviços básicos como água encanada e luz elétrica, embora hoje estejam ainda ausentes de muitas casas, nem sequer existiam então. “O capitalismo é o modelo da competição, da inovação. Foi esse modelo que levou aos desenvolvimentos tencológicos que temos hoje”, afirma.

Segundo Vieira da Silva, embora em um primeiro momento o capitalismo viva da exploração de trabalhadores, num segundo momento ele acaba representando a libertação destes mesmos trabalhadores.
O enriquecimento dos europeus e norte-americanos seria indício disso. Agora, seria a vez de países como Brasil estarem vivendo essa melhoria. Na sequência, China e Índia seriam beneficiadas. A criação de mais riquezas, diz a tese, leva, ainda que lentamente, a uma distribuição do que é produzido.

Democracia

Há quem vá mais longe. Para o francês Claude Jessua, professor emérito da Universidade Pan­­théon-Assas (Paris II), a democracia só pode existir sob o capitalismo. A liberdade de expressão, de opinião e de voto seria uma consequência da liberdade econômica. Num modelo centralizador, planejado, não haveria condições para o debate político.

A esquerda não concorda com a tese. “Se definimos a democracia verdadeira como ‘governo do povo’, ela é impossível no capitalismo pelo mesmo motivo pelo qual a justiça social é impossível: em um sistema baseado na exploração do homem pelo homem, explorados e exploradores não po­­dem ter direitos políticos iguais, pois caso tivessem, os explorados, que constituem a imensa maioria da população, deporiam os exploradores”, diz Germer.

O principal modelo no mundo atual que consegue conjugar tanto a igualdade entre as pessoas quanto a democracia existe apenas em alguns países da Europa. É a social-democracia, regime que se parece com um “socialismo dentro do capitalismo”. Funciona assim: todos têm as liberdades do capitalismo: livre empresa, livre associação e até livre acumulação. Com um detalhe: o governo cobra muito, muito imposto. E usa esse dinheiro para dar serviços públicos de qualidade a todos. O caso mais famoso de social-democracia é o da Suécia.

Outros países que costumam liderar or rankings de qualidade de vida e igualdade de condições adotam o modelo, ou versões parecidas: Dinamarca, Noruega, França e Canadá, por exemplo.
No entanto, ninguém acredita que a social-democracia sirva para todo o mundo.
Primeiro, dizem os teóricos, é preciso lembrar que esses países já eram ricos antes de implantar o sistema. Segundo, nenhum de­­les tem o tamanho do Brasil, Es­­tados Unidos ou Índia, que poderiam ter dificuldades em copiar o sistema.

“Creio que todos gostariam que todo o mundo pudesse seguir o modelo destes países. Infeliz­­men­­te, no capitalismo é impossível que todos os países sejam como a Suécia, porque não é possível ha­­ver ricos muito ricos sem que haja pobres muito pobres, porque são estes últimos que produzem a riqueza que se concentra nas mãos dos ricos”, diz Germer.

A social-democracia parece, para boa parte dos teóricos, ser a luz no fim do túnel. Liberdade, riqueza e igualdade ao mesmo tempo. Se isso será possível em algum lugar fora dos países ricos da Europa, porém, é uma resposta que ninguém ainda tem.

“Mão invisível”
Saiba mais sobre o nascimento do sistema capitalista:
Origem
Ao contrário de outros modelos, como o socialismo e o comunismo, que nasceram primeiro na cabeça de teóricos para depois serem implantados, o capitalismo surgiu sem que ninguém percebesse. No fim da Idade Média, quando as pessoas, na Europa Ocidental, deixaram o campo e passaram a viver em grandes cidades, um sistema de troca baseado na moeda passou a ser importante: cada um tinha uma profissão, e precisva de dinheiro para comprar o que as pessoas de outras áreas produziam.
Dinheiro
O sistema tem como principal característica o uso do dinheiro para produzir mais dinheiro. O capitalista é o dono do recurso. Investe-o em uma empresa ou no banco, esperando retorno financeiro. O direito à propriedade é a base de tudo. É um regime de grande liberdade econômica: permite-se a livre empresa e a livre acumulação.
Coletividade
A grande dúvida sobre o sistema sempre foi se ele seria justo. Adam Smith, o primeiro grande teórico a tentar entender o sistema, acreditava que uma “mão invisível” levaria o mercado a favorecer a coletividade. Mesmo agindo por ganância, o homem acabaria dando empregos a outros, remunerando terceiros e distribuindo riqueza.
Alternativas
No século 19, outros teóricos duvidaram disso e criaram sistemas alternativos em que a riqueza seria distribuída de maneira igualitária por intervenção de um Estado forte. Os mais famosos são o socialismo e o comunismo.
Igualdade
A ideia do que é justo também varia:
Origem
A ideia de um mundo justo sempre esteve presente no mundo, desde a Grécia antiga. O que é um mundo justo, porém, depende da concepção de cada autor. Para Marx, por exemplo, seria necessário seguir um princípio famoso: “De cada um segundo suas possibilidades; a cada um, segundo suas necessidades”.
Reflexão
No século 20, um livro causou sensação ao propor uma reflexão sobre a justiça social. John Rawls, ao escrever Uma Teoria da Justiça, afirmou que deveríamos fazer o seguinte exercício: imaginar que ainda não nascemos e que não temos a mínima ideia das condições que vamos encontrar aqui fora. Que mundo esperaríamos encontrar para nós?
Condições
Para os defensores do capitalismo, a teoria mais aceita continua sendo a de que é preciso dar condições minimamente iguais a todos de início. No decorrer da vida, no entanto, o mérito pessoal e o esforço determinariam a recompensa colhida por cada um.
 

LIVROS SOBRE LUTO

Obras sobre morte não faltam, mas as que abordam diretamente o luto são menos frequentes. Veja algumas sugestões:
Livros

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Vivemos como se não fôssemos morrer

Entrevista com Evaristo Eduardo de Miranda, doutor em Ecologia e ministro das exéquias

A morte é instauradora da liberdade e da esperança em nossas vidas.” Com este posicionamento, forte para alguns, Evaristo Eduardo de Miranda, doutor em Ecologia e ministro de exéquias na Igreja Católica, se apresenta na entrevista concedida por e-mail à Gazeta do Povo. Ele é autor dos livros Agora e na Hora – Ritos de Passagem a Eternidade e A Foice da Lua no Campo das Estrelas – Ministrar Exéquias (Edições Loyola), que discutem a morte, o luto e os rituais de passagem.

Como a nossa sociedade se relaciona com a pessoa enlutada?

Em geral, de forma equivocada. Buscam retirar a pessoa da tristeza, querem que ela se distraia, convidam para sair, passear, viajar, eliminam objetos, roupas e tudo que possa lembrar o falecido etc. É um grande equívoco. Um verdadeiro delito. O processo de luto não é uma coisa doentia. É normal a pessoa se retirar, concentrando-se sobre si mesma e esquecendo um pouco do mundo exterior. É normal chorar. O luto é sadio. Diante de um caixão a pessoa sabe quem perdeu. Mas ainda não sabe o que perdeu. O que está indo embora com aquela pessoa. Que coisas não acontecerão mais, que experiências não poderão mais ser vividas. O processo de luto ajuda a pessoa a realizar a perda. O alcance da perda de um ente querido. A morte dos outros nos ajuda a nos prepararmos para nossa própria morte.

Qual a importância de cumprir os rituais de luto?

Durante anos, a pessoa esteve viva e presente. Agora durante anos, estará morta e ausente. Mas existe um período muito especial, de 12 a 24 horas, em que a pessoa está morta e presente. Todas as sociedades cuidam desse período que antecede o enterro, com ritos. Os rituais católicos das exéquias, do enterro, têm dois mil anos de experiências acumuladas e grande sabedoria. São ritos de corpo presente e de corpo ausente (missa de sétimo dia, 30 dias, Finados etc.). Esses ritos beneficiam a todos. Os símbolos, as orações, a encomendação do defunto, a benção do corpo, são essenciais para ajudar no luto, para reconciliar as famílias, para ajudá-las a perdoar e evitar o remorso ou a vingança. Para os que creem o rito também beneficia o irmão falecido. Ao invés da busca da comunicação com os mortos, instaura-se a comunhão com eles, com todos aqueles que nos antecederam na morte. Os cristãos chamam isso de comunhão dos santos.

Estes rituais se modificaram ao longo do tempo? Há uma tendência de encurtá-los e isso é prejudicial?

Hoje as pessoas livram-se dos mortos como de uma ameaça. Como se os defuntos fossem contagiosos. Fazem tudo com pressa e de forma quase clandestina. Como se fosse vergonhoso ter um morto na família. Os enterros não saem mais das casas, nem dos hospitais. Os corpos são velados rapidamente nos cemitérios e enterrados sem ritos, quase sem velório. Depois os filhos, os esposos, parentes e amigos pagam um preço psicológico muito alto por essa falta de cuidados e atenção, e até de respeito aos mortos. Hoje a morte ocupa no inconsciente das pessoas um lugar perturbador que no passado em grande parte era ocupado pelo sexo. A morte virou um tabu. O velório coloca a pessoa em contato real com o morto e com nossa própria morte. Velar significa cuidar. Esse tempo é necessário para nossa reflexão. Para preparar o luto. Com os símbolos dos ritos, nosso inconsciente pode elaborar tudo isso de forma ainda melhor. Se os pais amam os filhos, deveriam sempre lembrá-los (para o bem deles) que desejam rituais de enterro os mais completos possíveis.

O luto é um tema indigesto em uma sociedade que parece cada vez mais hedonista? Isso o torna um tabu?

Mais do que o luto, a morte é o grande tabu. Ninguém gosta de tocar no assunto. O tema é evitado nas conversas. Vivemos como se não fôssemos morrer. A morte é apresentada como algo acidental e não natural. A pessoa morre porque era obesa, porque teve câncer e o câncer não tem cura, porque estava dirigindo muito rápido etc. Como se ser vegetariano, andar com prudência, fazer exercícios regulares livrasse alguém da morte. Morremos porque somos mortais. Devemos viver bem, mas a consciência da morte instaura o tempo em nossa vida. Sabemos que temos um tempo limitado. Devemos fazer boas escolhas, com liberdade, e não perder tempo com besteiras, com modas, com situações insolúveis ou supérfluas.

Há espaço para o luto no cotidiano conturbado da nossa sociedade?

Sim. Antigamente, as pessoas se vestiam de preto, havia o luto de 30 dias, de um ano, o luto fechado. Hoje esses símbolos e manifestações exteriores desapareceram. Isso dificulta a comunidade no reconhecimento de uma pessoal enlutada. Mesmo assim é possível e necessário viver o luto. O luto nos coloca diante da realidade, do princípio de realidade. Quem não vive o luto tem dificuldade de aceitar o real, passa o tempo tentando viver como se o falecido ainda estivesse ali. A pessoa mergulha na melancolia. Um dos últimos escritos de Freud, magnífico, é um texto intitulado Luto e Melancolia. Desorientadas, sem entrar no luto e na luta do real, as pessoas conversam com os mortos nos sonhos. Até aí, tudo bem. Mas às vezes tentam falar efetivamente com esse objeto que não existe mais. Recorrem a outras pessoas para comunicar-se com o morto. E quando isso progride, há casos em que a pessoa começa efetivamente a falar com o morto, em casa, na rua, no jardim... Aí já estamos na esquizofrenia e diante de um processo muito doloroso e em muitos casos irreversível.

Encontros para o amparo mútuo

O que leva alguém a procurar ajuda mútua em um grupo como o Amigos Solidários na Dor do Luto? Em geral, são pessoas que se sentem diferentes dos outros, responde a coordenadora Zelinda de Bona. A morte de um filho, por exemplo, caso mais comum entre os frequentadores, não deixou ainda de doer.
“Eles se sentem um pouco deslocados, diferentes, e às vezes nem têm vontade de se encontrar com outras pessoas”, diz a senhora de 73 anos, que há oito participa do grupo.

Enquanto o resto do mundo seguiu adiante, a mãe ou o pai continuam sentindo a necessidade de lembrar e falar daquele que se foi. E nem sempre encontram, em casa ou porta afora, ouvidos afáveis ao drama solitário. “As outras pessoas talvez não queiram escutar porque não sabem como lidar com nossa dor. No grupo, encontram mais espaço.”

“Nós, que já vivemos o luto, acolhemos essas pessoas para que consigam lidar melhor com a dor”, diz Zelinda. Sem formação técnica, ela compartilha vivências com os outros participantes, que variam muito em perfil e número, mas não costumam ser menos de 15 por sessão.

As reuniões acontecem a cada segunda-feira, na ala do curso de Psicologia da Universidade Federal do Paraná, na Praça Santos Andrade. Em círculo, começam com uma oração ecumênica e se abrem para depoimentos pessoais, respeitando sigilo fora dali. O encontro termina mais informal, num chá com biscoitos, quando o que não foi dito à roda pode ser desabafado num canto, com quem se tem mais afinidade.

Não há regras de frequência: vai quem (e quando) sente necessidade, fala o quanto quer, ri e chora, de acordo com o humor. “Tem pessoas que chegam muito mal e revoltadas com o mundo, a vida, até com Deus. Outras chegam caladas. Não tem padrão. Mas uma coisa eu digo: elas sempre saem melhor”, garante a senhora. Zelinda compara o grupo à resistência das sequóias, que entrelaçando as raízes, se fortalecem.

“A vida nunca será igual, mas tem que ser vivida porque há outras pessoas que o cercam e precisam de você”, generaliza, falando de si mesma: “Eu troquei a ausência do meu neto pelas saudades. Já não me revolto, agradeço os 14 anos que ele esteve em nossa família.”

Tempo

O Amigos Solidários na Dor do Luto foi criado em 1998 pela escocesa Rose Ann Figurelli, casada com um brasileiro. Ela havia perdido o filho mais velho para um câncer violento. Passado algum tempo, foi à Escócia em uma visita familiar e ouviu falar de um grupo de pais em luto que se reunia uma vez por semana. Trouxe a ideia e a pôs em prática, cinco anos depois da morte do rapaz.

Zelinda também tardou seis anos entre a perda do neto e o ingresso no grupo. Mas há quem procure os Amigos Solidários logo depois dos rituais de despedida. Como não funciona com um orientador, mas por amparo mútuo, é importante que alguns dos participantes já tenham elaborado melhor seu luto, para poder mostrar mais estrutura emocional diante do desabamento alheio.

“A morte e a vida caminham juntas. Na hora de nascer, você já perde a placenta. No decorrer da vida, vai tendo outras perdas: perde o seio da mãe que o amamentava, perde o colo quando começa a caminhar, vai à escola e deixa a casa, perde a juventude, as antigas formas, sai de casa, perde os pais, a esposa. A vida são perdas e ninguém está preparado para a morte, mas está aí”, diz, sem pessimismo, com resignação.
Zelinda percebe que há, contudo, quem se apegue ao luto crônico. Mães ou pais cujos filhos morreram há uma década, mas que ainda querem vivenciar o luto. A esses, alerta: “Outras pessoas precisam de você inteiro. Ninguém quer uma mãe ou um pai ou uma avó pela metade.”

Serviço

Amigos Solidários na Dor do Luto. Reuniões às segundas-feiras às 14h30. Prédio Histórico da UFPR – 1º andar, ala de Psicologia, sala 118 (Praça Santos Andrade).

Rápido e indolor, se possível

Os rituais fúnebres, que ajudam o enlutado a compreender a perda e reforçam os laços sociais, foram encurtados para evitar constrangimentos e a contaminação da dor

Por Annalice Del Vecchio

Um dia você se pega distraído pensando na morte de uma pessoa querida. Imagina detalhes como as mãos frias do morto, o seu próprio desespero, o caixão sendo lacrado. Fecha bem forte os olhos e, com dificuldade, tenta focar sua atenção em outras coisas. Afinal, aconselham os amigos, “de nada adianta pensar nisso”.

Sintomas

Durante essa fase de readaptação à realidade, o luto é vivenciado em várias áreas da vida:
Emocional
Pode se manifestar como choque, entorpecimento, déficit de memória e de concentração, culpa, ansiedade, medo, solidão e irritabilidade.
Social
É causa de isolamento e da sensação de ser “diferente” dos não enlutados.
Físico
As reações incluem alterações de apetite, peso e sono, falta de ar, desinteresse sexual, queda do sistema imunológico e alteração metabólica.

Comportamento

Consumo do álcool, fumo e drogas. Postura “aérea”. Questionamento de valores ou de crenças espirituais.
Em uma sociedade que exalta a vida, o corpo sadio, a beleza, o prazer, parece não haver mais lugar para expressar sentimentos considerados negativos como o sofrimento e o lamento. O próprio luto se tornou algo discreto, reduzido à esfera privada para não causar cons­­trangimento e desconforto. Os rituais fúnebres – velório, cortejo, enterro e cultos – se adaptaram aos novos contornos da sociedade, urbanizada e individualista, tornando-se rápidos e assépticos.

Há 30, 40 anos, parentes próximos eram reverenciados com luto fechado por até um ano. Nos seis meses seguintes, admitia-se o meio luto, com roupas brancas e pretas, e o fumo, a tarja preta na manga da camisa usada pelos homens. O velório era feito em casa e o cortejo até o cemitério tinha o acompanhamento de vizinhos e amigos.

“A toalete do morto passou a ser realizada por especialistas que, mediante práticas higiênicas e tratamento estético, conferem uma aparência de tranquilidade. O velório se tornou curto e, por questões de segurança, dificilmente é realizado à noite. Já o cortejo fúnebre costuma ser limitado ao espaço do cemitério e, geralmente, exclui as crianças”, descreve a socióloga Marisete Hoffmann, professora da Universidade Federal do Paraná e autora da tese de doutorado Memórias de Morte e Outras Lembranças.

Presente de grego

Na sociedade que nega o sofrimento, o luto se torna algo que precisa ser contornado rapidamente. “O grupo social respeita a dor da perda, mas tende a ser impaciente quando ela é de­monstrada na esfera pública. Sentimentos de pesar devem ser ocultados, pois lembram a fragilidade e a finitude humanas”, diz Marisete.

Ignorar o sofrimento é literalmente um “presente de grego”, diz o professor Edmundo de Oliveira Gaudêncio, da Universidade Federal de Campina Grande e da Universidade Estadual da Paraíba. “Herdamos da Grécia clássica a crença de que o melhor modo de enfrentar o luto é não falando dele e, principalmente, não chorando, quando a melhor medida seria ceder à tentação do pranto”, diz o doutor em sociologia.

Esse escapismo se reflete em uma queima de etapas prejudicial, afinal, quem não vive o luto em toda a sua dimensão não consegue superá-lo. “Tememos a ‘contaminação da dor’, não oferecemos continência ao enlutado, retirando prematuramente o suporte.

Precisamos respeitar nossas limitações e dar espaço para aquilo que nos torna verdadeiramente humanos: nossa capacidade de amar, sofrer a perda daqueles que amamos e, acima de tudo, atribuir significado a essa perda. A sociedade deve contribuir para que o enlutado atribua sentido à perda, oferecendo continência, informação e compreensão”, diz Luciana Mazorra, doutora em Psicologia Clínica pela

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Além de garantir simbolicamente a passagem para o além, Marisete explica que os rituais fúnebres promovem ainteração entre a pessoa enlutada e o grupo, que lhe transmite apoio e conforto. “Cada ritual tem uma função que ajuda a trazer segurança, amenizando a dor do enlutado e reforçando os laços sociais”, diz.

Depois do fim

O período de recuperação após uma perda significativa, ao qual pouco se dá atenção em uma sociedade que evita encarar sua condição de mortal.

Por Luciana Romagnolli

Sem velórios prolongados nem familiares sustentando o preto em seus trajes por meses ou anos a fio, o luto perdeu espaço de expressão na atualidade. Se pouco se fala dele, é porque qualquer assunto relacionado à morte vira tabu em uma sociedade em que se evita, com tantas distrações quanto possíveis, encarar a condição de mortal do ser humano, e na qual o sofrimento muitas vezes relacionado ao fracasso e à fragilidade, coloca o enlutado na posição de “incômodo” para quem não quer ser “contaminado” pela dor alheia.

O luto, contudo, é uma reação natural e esperada ao rompimento de um vínculo. Um processo de elaboração de uma perda significativa, que não se aplica apenas a casos de morte, mas também a outras situações de privação irreversíveis, como separações, desemprego e aposentadoria, variando de acordo com a intensidade do apego. Sua negação, sim, pode ser patológica.

“Lidar bem com o luto significa poder enfrentar os sentimentos evocados pela perda, a nova realidade que esta impõe e também poder ter momentos de evitar a dor e voltar-se para a vida”, diz Luciana Mazorra, doutora em Psicologia Clínica e diretora do 4 Estações – Instituto de Psicologia sediado em São Paulo.

Durante essa fase de readaptação à realidade, o luto é vivenciado em várias áreas da vida, produzindo efeitos emocionais, comportamentais, físicos e sociais, como alterações na alimentação e no sono, irritabilidade, isolamento ou depressão. Não se trata, no entanto, de um período apenas de baixos, mas de oscilações. “Leva tempo entre esses dois movimentos, a vivência de uma ampla gama de sentimentos e reações enquanto, gradualmente, a dor ocupa um espaço menos central na vida do enlutado, ao passo que o espaço dado a novos projetos e interesses é incrementado”, explica Luciana.

O tempo de elaboração do que aconteceu e das implicações na vida de quem ficou foi chamado por Freud de “trabalho de luto”. Para o pai psicanálise, equivale a “sepultar o morto dentro de si”. Pode ser agudo, quando vivido imediatamente após a perda, ou crônico (a forma patológica), nas situações de inaceitação – esclarece o professor e doutor em Sociologia Edmundo Gaudêncio, da Universidade Federal de Campina Grande e da Universidade Estadual da Paraíba.

Partindo de Freud, um outro psicanalista, John Bowlby, dividiu as etapas do luto em três. A começar pelo estágio de desespero e apatia, no qual é nítido o abatimento do enlutado, seguido pelo estágio de desorganização da vida (familiar, social e produtiva) até, por fim, a aceitação.

Já a mais propagada distinção, feita pela psiquiatra Elizabeth Kubler-Ross, compreende cinco fases: negação, barganha, raiva, depressão e aceitação. “É muito comum que o enlutado apresente reações de choque e negação de início, como se precisasse de um tempo para digerir a informação da morte. Em seguida, pode manifestar raiva e protestar diante de tal realidade, como se tentasse revertê-la, ao chorar e chamar pela pessoa perdida. Ao perceber que a pessoa não retornará, a dor é muito intensa, e o enlutado precisa de tempo para aceitar a perda, transformar sua relação com a pessoa perdida e sua própria identidade sem esta pessoa”, descreve Luciana Mazorra.

Apesar de ser esse o desenvolvimento mais esperado, a psicóloga chama a atenção para o fato de que cada um experimenta o processo à sua maneira, inclusive podendo passar pelas etapas diversas vezes, e por isso é importante evitar o “enquadramento” do enlutado.

“Atualmente, os estudiosos não trabalham mais com a concepção de fases do luto, pelo risco de avaliarmos injusta e preconceituosamente a condição da pessoa de uma maneira genérica, deixando de lado suas particularidades”, reforça a professora Maria Helena Pereira Franco, cooordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto – LELu, da PUC-SP, pioneiro em pesquisas sobre temas relativos ao luto no país, desde 1996.

Entre as particularidades de cada caso, há uma série de fatores envolvidos que pode complicar ou estender o luto. Uma morte violenta, repentina, muito sofrida ou que inverta a ordem natural das coisas (filhos que morrem antes dos pais, por exemplo) tende a ser agravante. Mas há mais em jogo: relações de dependência com o morto, o histórico de perdas do enlutado, suas crenças espirituais e o apoio recebido.
“Um fator que com muita frequência melhora a dor de uma perda trágica é o perdão da vítima enlutada àquele que lhe produziu o luto”, comenta Gaudêncio. No sentido contrário, a impossibilidade de prantear e sepultar o cadáver ou casos de perdas não reconhecidas socialmente, como os abortos, potencializam o sofrimento.

Luciana Mazorra acrescenta que a elaboração do luto é mais efetiva quando se consegue “atribuir sentido à perda” – no que podem ajudar atividades como conversar sobre o que aconteceu, escrever, fazer psicoterapia ou participar de grupos de autoajuda, como o curitibano Amigos Solidários na Dor do Luto (ler reportagem na página 2). Há também quem sublime a dor da falta transformando-a em arte ou se dedicando a causas socais.

Identidade revista

Ao elaborar ou “metabolizar” a perda, o enlutado passa por um processo de revisão da própria identidade agora sem aquela pessoa que se foi, e de transformação da relação que mantinha com o morto e consigo mesmo. “Sua identidade não é a mesma, a vida não é a mesma e vai ser muito importante que se dê conta das mudanças para conviver com a realidade de forma saudável”, observa a psicóloga Maria Helena.

Como o caso da viúva que terá de se apropriar dessa nova identidade social, descobrir quem ela é sem o marido, perceber que papel desempenhava na relação e desenvolver novas competências, redefinindo suas expectativas de futuro e um projeto de vida dali em diante. “É um processo gradual e árduo, mas que também pode ser um momento rico e de descobertas pessoais quando se recebe o apoio necessário para enfrentá-lo”, avalia Luciana Mazorra.

Veja como as religiões lidam com o luto

Judaísmo
Para os adeptos da mais antiga religião ocidental, a vida é a preparação para um mundo vindouro. A cremação é proibida e o corpo é velado com o caixão fechado, em respeito ao morto.

Os homens são enterrados com seu xale de oração.
Durante a cerimônia, o rabino discursa e os filhos homens recitam o kadish.

O luto se divide em três fases: shivá – sete primeiros dias; shloshim – período de 23 dias; e avelut – estende-se até o primeiro ano após o falecimento, mas só é observado pelos filhos.

Budismo
O budismo compara a vida presente ao “sono”, devido à ignorância que mantém o homem inconsciente de sua verdadeira natureza e preso a um ciclo de renascimentos e mortes. Ao obter a “Verdadeira Sabedoria”, ele se liberta, alcançando o Nirvana ou estado de perfeição espiritual. Os budistas adotam, prioritariamente, a cremação. Durante o luto é importante cultivar sentimentos de gratidão com relação aos familiares que se foram e aprender com o morto sobre a inevitabilidade da morte.

Cristianismo
Os cristãos – católicos, evangélicos, pentecostais e ortodoxos – creem que o espírito desencarnado vai para o céu ou para o inferno (os católicos acreditam também no purgatório), de acordo com os pecados que cometeu. O Juízo Final é quando os mortos ressuscitarão para uma vida eterna junto a Deus. Os rituais de morte e luto têm similaridades, incluindo: unção, velório, enterro e orações (cultos, missas). O Espiritismo segue uma tradição particular nesse contexto, pois crê na reencarnação do espírito, que é eterno e evolui.

Islamismo
Os adeptos da religião veem a morte como passagem para uma próxima etapa. No Juízo Final, acontecerá a ressurreição, todas as almas retornarão a corpos jovens e sem defeitos. A cremação voluntária é proibida. O caixão serve apenas para transportar o corpo até o cemitério; deve ser simples. O velório apenas serve para cumprir a burocracia ou aguardar um parente. Quanto antes for realizado o sepultamento melhor. Não há luto; para o islamita a morte deve ser vista como natural.
Fonte: Site do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (http://www.crpsp.org.br/).

REVISTA DIRETOR FUNERÁRIO

Esta já está a tempo no território nacional:

http://ww2.funerarianet.com.br/?area=secao&id=3

REVISTA IN MEMORIAN

Estou a destacar mais uma revista do setor funerário.

Blog:
http://revistainmemorian.blogspot.com/

Home Page:
http://www.revistainmemorian.com.br/

Viva como se fosse morrer

Não deixe as pequenas aporrinhações matar você.
Dê valor ao que importa e adie a partida final

Além de me exercitar regularmente e correr bem, ponho no topo das prioridades cometer suicídio de dois em dois anos. Algumas garotinhas sonham com aquele casamento de filme, planejando e vislumbrando o vestido de noiva ideal, mas desde pequeno venho planejando o supremo assassinato de mim mesmo. Já desenhei o quadro: eu cadáver inteirinho, sem grandes bagunças. Nada de arma ou forca, nenhum mergulho de prédio.
Como repórter de jornal nos Estados Unidos, todo inverno me mandavam cobrir a mesma cena: uma família encontrada morta depois de tentar aquecer a casa trazendo uma churrasqueira de carvão comum para dentro. Em todos os casos, tinham sido sufocados pelo monóxido de carbono enquanto dormiam, e lá ia eu visitar o local com a polícia. Aquelas famílias, mamãe, papai e crianças cobertinhos em suas camas, pareciam... muito bem. Tão tranquilos. Sem qualquer sinal de contorções, vômitos, espasmos. Os rostos suaves e relaxados como se estivessem dormindo.
Se você me perguntar, esse é o jeito certo de ir,. Eu devo estar influenciado por morar em um estado onde está na lei que você pode encerrar a cena você mesmo. Algum dia vou contar de quando me convidaram para um bota-fora em que o anfitrião bebeu fenobarbital. Eu não conhecia ninguém ali, especialmente o anfitrião, que estava a algumas semanas de uma morte natural de câncer de cólon. Uma amiga de um amigo de uma amiga havia me telefonado chorando e implorando que eu fosse com ela, porque pegaria mal, seria até meio patético chegar desacompanhada a um evento daqueles. É incrível, mas nem Judith Martin, nem Emily Post ou Amy Vanderbilt, ninguém tratou da etiqueta desse tipo de situação - o que usar, o que levar como presentinho discreto, como se dirigir ao moribundo estranho. O pior é que eu não sabia do caráter de Saída Final da reunião até que pediram aos convidados para dar as mãos e acender as velas. Foi meu blind date com a morte.
A autoeutanásia é uma grande tendência em formação. A cada ano, nos EUA, cerca de 26 mil homens morrem pelas próprias mãos, incluindo alguns mais espertos e corajosos do que você e eu. Hunter S. Thompson. Kurt Cobain. Spalding Gray. David Foster Wallace. Esses foram homens de realizações, finanças e talentos infinitos, e vamos sentir falta deles. Mas, se você vai mesmo encerrar a conta nesse mundo, deve primeiro prometer que vai assumir uma tarefa mais difícil. Vai ter de esperar sete dias, e nessa última semana de sua vida vai ter de realizar o que chamo casualmente de os Trés Ls. Não se preocupe. O tempo passará voando. Como na última semana de um emprego que você odeia, cada momento será banhado de nostalgia e adoçado pela noção de que você é um cadáver ambulante. O Temporário Definitivo. O jogo está quase terminado, e você só fazendo cera.
O primeiro L é o de limpeza. Limpe o banheiro. Limpe o carro. Lave a roupa e esfregue os rejuntes. Arraste a geladeira e limpe atrás dela. Lave as janelas. Faça tudo isso. O segundo L é o de Liberar. Esvazie os arquivos e descarte tudo, exceto seus papéis mais importantes. O mesmo vale para os armários e recordações - é isso mesmo, todas as suas posses. O que você não tem olhado recentemente mande bala. Doe. Destrua. Jogue toda a sua histórias e segredos no lixo, Faça o mesmo com os remédios envelhecidos do armário da cozinha. Além disso, saia e vá atrás de um bom corte de cabelo. Apesar da crença popular, o cabelo humano não cresce depois da morte, então é melhor você já ficar bonito. Agrade-se, mime-se bastante; você tem minha permissão.
Qualquer um dirá que não são os grandes desastres que liquidam a gente. Não, no caso de uma invasão de aliens hostis ou de um ataque de zumbis comedores de gente, a maioria dos caras vai se juntar para a briga. Até um terremoto médio ou um incêndio florestal constitui uma boa mudança de ritmo. Mas o que acaba mesmo com a gente são as multas de trânsito. A comida estragada no fundo da geladeira. A roupa suja no fundo do cesto, que não vê a luz do dia desde 1995. Depois que você deixa acumular um volume crítico dessas pequenas dessas aporrinhações, você afunda.
Com relação a liberar, o que quero dizer é: se você pode fazer a barba, você pode viver.
O terceiro L é o de Ligação, conexão. Significa contatar todo mundo que você já conheceu e dizer alguma coisa boa. Não importa quanto você já conheceu e dizer alguma coisa boa. Não importa quanto você odeia a pessoa, largue essa amargura. Identifique algum aspecto de cada pessoa, algo que você admirava secretamente, ou invejava, ou desejava, e elogie isso. Diga o quanto você tinha ciúme, seja da carreira, seja do casamento feliz, seja de uma malha de lã de gola rolê do sujeito.
Esqueça a autopiedade. Esqueça a raiva e as defesas. Perdoe todo mundo e perdoe a si mesmo. Em outra semana, eles vão estar com os olhos caídos no seu caixão, doloridos por dentro. Então, por enquanto, dê a eles um agrado. Dê a eles um refresco.
Vá mais longe, imagine completamente sua morte: e o calor aconchegante, a zonzeira agradável. A trilha de seu filme ou sua música preferida tocando ao fundo. Visualize seu banheiro límpido, os fichários vazios. Depois imagine o mundo sem você. Os mesmos congestionamentos e as regiões famintas. A mesma baboseira nas brigas políticas e seu time sempre eliminado do campeonato. As pessoas vão esquecer de você. Todo mundo vai esquecer de você. Você não é nenhum Kurt Cobain, então acenda a churrasqueira e asse uma linguiça...
Mas se você completou os Três Ls é bem provável que você nem se dê ao trabalho. Porque então vai estar cercado de amigos que agora reconhecem como você é um cara valioso e sensível. Seu forno vai estar limpo, seu carro aspirado. Da mesma forma como você procrastinou a declaração do imposto de renda, pode procrastinar sua morte. E, ao menos por enquanto, seu cabelo está... uma beleza.
Por Chuck Palahniuk