terça-feira, 21 de setembro de 2010

Vivemos como se não fôssemos morrer

Entrevista com Evaristo Eduardo de Miranda, doutor em Ecologia e ministro das exéquias

A morte é instauradora da liberdade e da esperança em nossas vidas.” Com este posicionamento, forte para alguns, Evaristo Eduardo de Miranda, doutor em Ecologia e ministro de exéquias na Igreja Católica, se apresenta na entrevista concedida por e-mail à Gazeta do Povo. Ele é autor dos livros Agora e na Hora – Ritos de Passagem a Eternidade e A Foice da Lua no Campo das Estrelas – Ministrar Exéquias (Edições Loyola), que discutem a morte, o luto e os rituais de passagem.

Como a nossa sociedade se relaciona com a pessoa enlutada?

Em geral, de forma equivocada. Buscam retirar a pessoa da tristeza, querem que ela se distraia, convidam para sair, passear, viajar, eliminam objetos, roupas e tudo que possa lembrar o falecido etc. É um grande equívoco. Um verdadeiro delito. O processo de luto não é uma coisa doentia. É normal a pessoa se retirar, concentrando-se sobre si mesma e esquecendo um pouco do mundo exterior. É normal chorar. O luto é sadio. Diante de um caixão a pessoa sabe quem perdeu. Mas ainda não sabe o que perdeu. O que está indo embora com aquela pessoa. Que coisas não acontecerão mais, que experiências não poderão mais ser vividas. O processo de luto ajuda a pessoa a realizar a perda. O alcance da perda de um ente querido. A morte dos outros nos ajuda a nos prepararmos para nossa própria morte.

Qual a importância de cumprir os rituais de luto?

Durante anos, a pessoa esteve viva e presente. Agora durante anos, estará morta e ausente. Mas existe um período muito especial, de 12 a 24 horas, em que a pessoa está morta e presente. Todas as sociedades cuidam desse período que antecede o enterro, com ritos. Os rituais católicos das exéquias, do enterro, têm dois mil anos de experiências acumuladas e grande sabedoria. São ritos de corpo presente e de corpo ausente (missa de sétimo dia, 30 dias, Finados etc.). Esses ritos beneficiam a todos. Os símbolos, as orações, a encomendação do defunto, a benção do corpo, são essenciais para ajudar no luto, para reconciliar as famílias, para ajudá-las a perdoar e evitar o remorso ou a vingança. Para os que creem o rito também beneficia o irmão falecido. Ao invés da busca da comunicação com os mortos, instaura-se a comunhão com eles, com todos aqueles que nos antecederam na morte. Os cristãos chamam isso de comunhão dos santos.

Estes rituais se modificaram ao longo do tempo? Há uma tendência de encurtá-los e isso é prejudicial?

Hoje as pessoas livram-se dos mortos como de uma ameaça. Como se os defuntos fossem contagiosos. Fazem tudo com pressa e de forma quase clandestina. Como se fosse vergonhoso ter um morto na família. Os enterros não saem mais das casas, nem dos hospitais. Os corpos são velados rapidamente nos cemitérios e enterrados sem ritos, quase sem velório. Depois os filhos, os esposos, parentes e amigos pagam um preço psicológico muito alto por essa falta de cuidados e atenção, e até de respeito aos mortos. Hoje a morte ocupa no inconsciente das pessoas um lugar perturbador que no passado em grande parte era ocupado pelo sexo. A morte virou um tabu. O velório coloca a pessoa em contato real com o morto e com nossa própria morte. Velar significa cuidar. Esse tempo é necessário para nossa reflexão. Para preparar o luto. Com os símbolos dos ritos, nosso inconsciente pode elaborar tudo isso de forma ainda melhor. Se os pais amam os filhos, deveriam sempre lembrá-los (para o bem deles) que desejam rituais de enterro os mais completos possíveis.

O luto é um tema indigesto em uma sociedade que parece cada vez mais hedonista? Isso o torna um tabu?

Mais do que o luto, a morte é o grande tabu. Ninguém gosta de tocar no assunto. O tema é evitado nas conversas. Vivemos como se não fôssemos morrer. A morte é apresentada como algo acidental e não natural. A pessoa morre porque era obesa, porque teve câncer e o câncer não tem cura, porque estava dirigindo muito rápido etc. Como se ser vegetariano, andar com prudência, fazer exercícios regulares livrasse alguém da morte. Morremos porque somos mortais. Devemos viver bem, mas a consciência da morte instaura o tempo em nossa vida. Sabemos que temos um tempo limitado. Devemos fazer boas escolhas, com liberdade, e não perder tempo com besteiras, com modas, com situações insolúveis ou supérfluas.

Há espaço para o luto no cotidiano conturbado da nossa sociedade?

Sim. Antigamente, as pessoas se vestiam de preto, havia o luto de 30 dias, de um ano, o luto fechado. Hoje esses símbolos e manifestações exteriores desapareceram. Isso dificulta a comunidade no reconhecimento de uma pessoal enlutada. Mesmo assim é possível e necessário viver o luto. O luto nos coloca diante da realidade, do princípio de realidade. Quem não vive o luto tem dificuldade de aceitar o real, passa o tempo tentando viver como se o falecido ainda estivesse ali. A pessoa mergulha na melancolia. Um dos últimos escritos de Freud, magnífico, é um texto intitulado Luto e Melancolia. Desorientadas, sem entrar no luto e na luta do real, as pessoas conversam com os mortos nos sonhos. Até aí, tudo bem. Mas às vezes tentam falar efetivamente com esse objeto que não existe mais. Recorrem a outras pessoas para comunicar-se com o morto. E quando isso progride, há casos em que a pessoa começa efetivamente a falar com o morto, em casa, na rua, no jardim... Aí já estamos na esquizofrenia e diante de um processo muito doloroso e em muitos casos irreversível.

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