terça-feira, 21 de setembro de 2010

Lucro x Justiça

O sistema capitalista pode ser justo? Pela primeira vez em 200 anos, o mundo Ocidental parece não ter uma alternativa ao modelo de livre mercado

Por Rogerio Waldrigues Galindo
Nenhum espectro ronda a Europa. Pela primeira vez em 200 anos, o capitalismo domina o mundo Ocidental praticamente sem concorrência. Na última vez em que isso aconteceu, antes da invenção do socialismo, no século 19, a situação era absolutamente diferente da atual. Tão diferente que não existia nem mesmo uma palavra para definir o capitalismo. O termo só surgiu como oposição aos outros sistemas criados pelos teóricos.

Na época, a ideia do socialismo surgiu principalmente porque a Revolução Industrial trouxe ao mundo uma situação cruel, que muitas vezes levava ao abuso dos trabalhadores em graus extremos. De lá para cá, muita coisa mudou: na maior parte do mundo, leis foram criadas para impedir abusos e o Estado de bem-estar social surgiu para garantir direitos mínimos aos trabalhadores.
 
Agora, dois séculos depois, o modelo alternativo (comunismo, socialismo, capitalismo de Estado, ou como o queiram chamar) está, no mínimo, adormecido, senão morto. E a pergunta que fica é: sendo o capitalismo a única alternativa, é possível imaginar que ele possa criar uma sociedade justa? Ou, indo mais direto ao ponto: é possível que nasça uma sociedade capitalista em que haja pouca pobreza e onde existam chances iguais para todos?

Fim da História?

Assim que o Muro de Berlim caiu, o clima foi de euforia entre os defensores do capitalismo. Não apenas a solução marxista foi dada como morta: Francis Fukuyama publicou em 1992 um livro afirmando que a História, assim mesmo, com letra maiúscula, havia chegado ao fim. O mundo havia encontrado um modelo liberal bom o suficiente para ser considerado definitivo.

Vinte anos passados, o socialismo se enfraqueceu ainda mais. Apenas ilhas (literais, como Cuba, ou simbólicas, como a Coreia do Norte) praticam algo parecido com o comunismo. No entanto, o capitalismo, mesmo dominante, não ganhou a unanimidade que poderia se esperar. A discussão sobre sua validade, essa não morreu nem está perto disso.

Para teóricos de esquerda, o capitalismo continua condenável como sempre. “A história de pelo menos três séculos do capitalismo mostra que ele produz desigualdade e injustiça social em escala cada vez maior”, afirma Claus Germer, professor de Economia da Universidade Federal do Paraná. “Atualmente cerca de três quartos da população mundial vivem em condições extremamente precárias, representadas por uma combinação de desemprego ou subemprego, subnutrição, analfabetismo, guerra, falta de moradias, falta de saneamento, precária assistência à saúde, falta de acesso à cultura, etc.”

Para ele – assim como para todos os teóricos da esquerda – o capitalismo se baseia na exploração de trabalhadores. O dono da empresa, o capitalista, faz dinheiro em cima do trabalho de terceiros. “A teoria econômica demonstrou, já há cerca de duzentos anos, que o salário paga apenas uma parte do trabalho prestado pelo trabalhador, a outra parte o trabalhador presta gratuitamente, e o valor que o seu trabalho cria nesta parte constitui a fonte do lucro do empregador. As empresas mais significativas de todos os setores empregam atualmente milhares de trabalhadores cada uma, e se apropriam portanto de um grande volume de trabalho gratuito. É isto que se denomina exploração do homem pelo homem.”

Inovação

Há quem pense o exato oposto. É o caso do professor José Guilherme Silva Vieira, da UFPR. Ele admite desde o princípio que o capitalismo não surgiu para resolver qualquer problema social. Nem é essa a sua lógica. Mas ele acredita que, por vias indiretas, o modelo acaba levando a um desenvolvimento coletivo.
“Pense num rei do século 16 na Europa”, diz ele, para deixar claro seu argumento. “É possível que até mesmo alguém que more em uma favela hoje tenha melhores condições de vida do que ele”, opina. Exagero? Talvez não. Hoje, a medicina garante vida mais longa; a higiente e o saneamento básico garantem uma vida mais saudável; serviços básicos como água encanada e luz elétrica, embora hoje estejam ainda ausentes de muitas casas, nem sequer existiam então. “O capitalismo é o modelo da competição, da inovação. Foi esse modelo que levou aos desenvolvimentos tencológicos que temos hoje”, afirma.

Segundo Vieira da Silva, embora em um primeiro momento o capitalismo viva da exploração de trabalhadores, num segundo momento ele acaba representando a libertação destes mesmos trabalhadores.
O enriquecimento dos europeus e norte-americanos seria indício disso. Agora, seria a vez de países como Brasil estarem vivendo essa melhoria. Na sequência, China e Índia seriam beneficiadas. A criação de mais riquezas, diz a tese, leva, ainda que lentamente, a uma distribuição do que é produzido.

Democracia

Há quem vá mais longe. Para o francês Claude Jessua, professor emérito da Universidade Pan­­théon-Assas (Paris II), a democracia só pode existir sob o capitalismo. A liberdade de expressão, de opinião e de voto seria uma consequência da liberdade econômica. Num modelo centralizador, planejado, não haveria condições para o debate político.

A esquerda não concorda com a tese. “Se definimos a democracia verdadeira como ‘governo do povo’, ela é impossível no capitalismo pelo mesmo motivo pelo qual a justiça social é impossível: em um sistema baseado na exploração do homem pelo homem, explorados e exploradores não po­­dem ter direitos políticos iguais, pois caso tivessem, os explorados, que constituem a imensa maioria da população, deporiam os exploradores”, diz Germer.

O principal modelo no mundo atual que consegue conjugar tanto a igualdade entre as pessoas quanto a democracia existe apenas em alguns países da Europa. É a social-democracia, regime que se parece com um “socialismo dentro do capitalismo”. Funciona assim: todos têm as liberdades do capitalismo: livre empresa, livre associação e até livre acumulação. Com um detalhe: o governo cobra muito, muito imposto. E usa esse dinheiro para dar serviços públicos de qualidade a todos. O caso mais famoso de social-democracia é o da Suécia.

Outros países que costumam liderar or rankings de qualidade de vida e igualdade de condições adotam o modelo, ou versões parecidas: Dinamarca, Noruega, França e Canadá, por exemplo.
No entanto, ninguém acredita que a social-democracia sirva para todo o mundo.
Primeiro, dizem os teóricos, é preciso lembrar que esses países já eram ricos antes de implantar o sistema. Segundo, nenhum de­­les tem o tamanho do Brasil, Es­­tados Unidos ou Índia, que poderiam ter dificuldades em copiar o sistema.

“Creio que todos gostariam que todo o mundo pudesse seguir o modelo destes países. Infeliz­­men­­te, no capitalismo é impossível que todos os países sejam como a Suécia, porque não é possível ha­­ver ricos muito ricos sem que haja pobres muito pobres, porque são estes últimos que produzem a riqueza que se concentra nas mãos dos ricos”, diz Germer.

A social-democracia parece, para boa parte dos teóricos, ser a luz no fim do túnel. Liberdade, riqueza e igualdade ao mesmo tempo. Se isso será possível em algum lugar fora dos países ricos da Europa, porém, é uma resposta que ninguém ainda tem.

“Mão invisível”
Saiba mais sobre o nascimento do sistema capitalista:
Origem
Ao contrário de outros modelos, como o socialismo e o comunismo, que nasceram primeiro na cabeça de teóricos para depois serem implantados, o capitalismo surgiu sem que ninguém percebesse. No fim da Idade Média, quando as pessoas, na Europa Ocidental, deixaram o campo e passaram a viver em grandes cidades, um sistema de troca baseado na moeda passou a ser importante: cada um tinha uma profissão, e precisva de dinheiro para comprar o que as pessoas de outras áreas produziam.
Dinheiro
O sistema tem como principal característica o uso do dinheiro para produzir mais dinheiro. O capitalista é o dono do recurso. Investe-o em uma empresa ou no banco, esperando retorno financeiro. O direito à propriedade é a base de tudo. É um regime de grande liberdade econômica: permite-se a livre empresa e a livre acumulação.
Coletividade
A grande dúvida sobre o sistema sempre foi se ele seria justo. Adam Smith, o primeiro grande teórico a tentar entender o sistema, acreditava que uma “mão invisível” levaria o mercado a favorecer a coletividade. Mesmo agindo por ganância, o homem acabaria dando empregos a outros, remunerando terceiros e distribuindo riqueza.
Alternativas
No século 19, outros teóricos duvidaram disso e criaram sistemas alternativos em que a riqueza seria distribuída de maneira igualitária por intervenção de um Estado forte. Os mais famosos são o socialismo e o comunismo.
Igualdade
A ideia do que é justo também varia:
Origem
A ideia de um mundo justo sempre esteve presente no mundo, desde a Grécia antiga. O que é um mundo justo, porém, depende da concepção de cada autor. Para Marx, por exemplo, seria necessário seguir um princípio famoso: “De cada um segundo suas possibilidades; a cada um, segundo suas necessidades”.
Reflexão
No século 20, um livro causou sensação ao propor uma reflexão sobre a justiça social. John Rawls, ao escrever Uma Teoria da Justiça, afirmou que deveríamos fazer o seguinte exercício: imaginar que ainda não nascemos e que não temos a mínima ideia das condições que vamos encontrar aqui fora. Que mundo esperaríamos encontrar para nós?
Condições
Para os defensores do capitalismo, a teoria mais aceita continua sendo a de que é preciso dar condições minimamente iguais a todos de início. No decorrer da vida, no entanto, o mérito pessoal e o esforço determinariam a recompensa colhida por cada um.
 

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