terça-feira, 21 de setembro de 2010

Rápido e indolor, se possível

Os rituais fúnebres, que ajudam o enlutado a compreender a perda e reforçam os laços sociais, foram encurtados para evitar constrangimentos e a contaminação da dor

Por Annalice Del Vecchio

Um dia você se pega distraído pensando na morte de uma pessoa querida. Imagina detalhes como as mãos frias do morto, o seu próprio desespero, o caixão sendo lacrado. Fecha bem forte os olhos e, com dificuldade, tenta focar sua atenção em outras coisas. Afinal, aconselham os amigos, “de nada adianta pensar nisso”.

Sintomas

Durante essa fase de readaptação à realidade, o luto é vivenciado em várias áreas da vida:
Emocional
Pode se manifestar como choque, entorpecimento, déficit de memória e de concentração, culpa, ansiedade, medo, solidão e irritabilidade.
Social
É causa de isolamento e da sensação de ser “diferente” dos não enlutados.
Físico
As reações incluem alterações de apetite, peso e sono, falta de ar, desinteresse sexual, queda do sistema imunológico e alteração metabólica.

Comportamento

Consumo do álcool, fumo e drogas. Postura “aérea”. Questionamento de valores ou de crenças espirituais.
Em uma sociedade que exalta a vida, o corpo sadio, a beleza, o prazer, parece não haver mais lugar para expressar sentimentos considerados negativos como o sofrimento e o lamento. O próprio luto se tornou algo discreto, reduzido à esfera privada para não causar cons­­trangimento e desconforto. Os rituais fúnebres – velório, cortejo, enterro e cultos – se adaptaram aos novos contornos da sociedade, urbanizada e individualista, tornando-se rápidos e assépticos.

Há 30, 40 anos, parentes próximos eram reverenciados com luto fechado por até um ano. Nos seis meses seguintes, admitia-se o meio luto, com roupas brancas e pretas, e o fumo, a tarja preta na manga da camisa usada pelos homens. O velório era feito em casa e o cortejo até o cemitério tinha o acompanhamento de vizinhos e amigos.

“A toalete do morto passou a ser realizada por especialistas que, mediante práticas higiênicas e tratamento estético, conferem uma aparência de tranquilidade. O velório se tornou curto e, por questões de segurança, dificilmente é realizado à noite. Já o cortejo fúnebre costuma ser limitado ao espaço do cemitério e, geralmente, exclui as crianças”, descreve a socióloga Marisete Hoffmann, professora da Universidade Federal do Paraná e autora da tese de doutorado Memórias de Morte e Outras Lembranças.

Presente de grego

Na sociedade que nega o sofrimento, o luto se torna algo que precisa ser contornado rapidamente. “O grupo social respeita a dor da perda, mas tende a ser impaciente quando ela é de­monstrada na esfera pública. Sentimentos de pesar devem ser ocultados, pois lembram a fragilidade e a finitude humanas”, diz Marisete.

Ignorar o sofrimento é literalmente um “presente de grego”, diz o professor Edmundo de Oliveira Gaudêncio, da Universidade Federal de Campina Grande e da Universidade Estadual da Paraíba. “Herdamos da Grécia clássica a crença de que o melhor modo de enfrentar o luto é não falando dele e, principalmente, não chorando, quando a melhor medida seria ceder à tentação do pranto”, diz o doutor em sociologia.

Esse escapismo se reflete em uma queima de etapas prejudicial, afinal, quem não vive o luto em toda a sua dimensão não consegue superá-lo. “Tememos a ‘contaminação da dor’, não oferecemos continência ao enlutado, retirando prematuramente o suporte.

Precisamos respeitar nossas limitações e dar espaço para aquilo que nos torna verdadeiramente humanos: nossa capacidade de amar, sofrer a perda daqueles que amamos e, acima de tudo, atribuir significado a essa perda. A sociedade deve contribuir para que o enlutado atribua sentido à perda, oferecendo continência, informação e compreensão”, diz Luciana Mazorra, doutora em Psicologia Clínica pela

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Além de garantir simbolicamente a passagem para o além, Marisete explica que os rituais fúnebres promovem ainteração entre a pessoa enlutada e o grupo, que lhe transmite apoio e conforto. “Cada ritual tem uma função que ajuda a trazer segurança, amenizando a dor do enlutado e reforçando os laços sociais”, diz.

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